quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A música e as imagens: Laibach

Se me perguntarem se primeiro vieram as imagens ou a música relativamente ao trabalho dos Laibach, eu vou responder que primeiro vieram as imagens, só depois a música, mas nem uma nem outra componente do seu trabalho ficaram apaziguadas dentro de mim. Já tinha ouvido falar dos Laibach, mas só quando foi a exposição dos Irwin na Culturgest em Lisboa, em 2007, chamada Irwin, A história re-construída, é que tive contacto com o universo em que se inseriam. Mais tarde em 2009 na 2ª edição de Residências de Artes Visuais na ZDB o João Alves dos Calhau! voltou a falar-me dos Laibach e da complexidade conceptual dos temas abordados mas, também me chamou à atenção para um problema da sua música, aquilo a que chamou na altura de música musculada, salvo erro. Passados uns meses comprei o meu primeiro disco, Opus Dei.
Os Laibach nasceram na Eslovénia em1980, no mesmo ano da morte de Josip Broz Tito, o líder da guerrilha de resistência anti-nazi, os Partisans, e presidente da então Jugoslávia, nessa altura as clivagens nacionalistas começaram a ter mais impacto e a ser cada vez mas explicitas, culminando uma década mais tarde na guerra da Bósnia e posteriormente do Kosovo.
Os Laibach integram-se numa plataforma multidisciplinar chamada  NSK, Neue Slowenische Kunst (Nova Arte Eslovena) de que fazem parte os próprios Laibach (música), Irwin (artes visuais), Scipion Nasice Sisters Theatre (artes performativas), New Collective Studio (artes gráficas), Retrovision (vídeo), e o Department of Pure and Applied Philosophy  (encarregados de alguma maneira de suportar teoricamente o trabalho dos restantes membros).  Como refere Miguel Wandschneider no texto do jornal da exposição anteriormente referida, a sobreidentificação (…) foi uma das estratégias postas em prática no seio do NSK, em especial pelos Laibach. Com forte caracter subversivo, visava a crítica radical dos regimes ditatoriais através da apropriação mimética e do exagero ad absurdum da ideologia e dos rituais do totalitarismo. (1) Essa sobreidentificação e esse uso exagerado dos rituais dos regimes totalitários é uma coisa que me incomoda nos Laibach, e o uso de símbolos nazis ou de obras ligadas à Nazikuntz um entrave para uma aceitação completa da sua música e de todo o seu trabalho. Embora consiga estabelecer alguma ligação com esta imagética, quando apresentada neste modo subvertido, tem de existir um sentido crítico e de alerta muito forte, porque se por vezes a paródia é flagrante ou há uma subversão do uso desses símbolos de maneira clara, outras vezes há, em que sinto que se pode ser levado pela sedução de tais imagens e sinto que se me distraio é como se estivesse a ser cúmplice e complacente das atrocidades cometidas pelos sistemas totalitários que criaram essas imagens e símbolos. Wandschneider escreveu ainda sobre o NSK, mais concretamente sobre os Irwin: A operação de montagem permite a reinterpretação e reactualização dos signos, esvaziando-os do seu conteúdo (significado) politico e ideológico para os revestir novamente de conotações politicas e religiosas (2), e de facto esses signos são muitas vezes justapostos, mas uma cruz suástica é sempre uma cruz suástica e há-de estar na nossa cultura sempre ligada ao nazismo, ela pode é, ao ser associada a outros signos, contaminá-los com o seu significado, mas não perde o próprio significado porque a memória colectiva que temos desse símbolo está ainda conotada com violência, destruição e preconceito, este processo de contaminação é visível por exemplo na pintura dos Irwin, Cruz de 2000, uma sobreposição de signos que ao serem apresentados em conjunto transportam os seus significados entre si, neste trabalho pode denotar-se claramente também a influência de Malevich e das vanguardas russas. Se na capa do disco The Third Reich’n,roll os The Residents, ao usarem suásticas e a figura de Hitler fazem uma clara paródia a este sistema (e para mim, uma comparação ao totalitarismo da cultura de massas norte-americana, escrevi sobre este disco um pequeno texto que foi publicado n’O Princípio) porque a capa apresenta-se cómica e num estilo próximo da PopArt, num tom comercial e descomprometido, para além disso a música é declaradamente cómica, paródica, jocosa e aparentemente apolítica, já os Laibach, por exemplo, ao usarem suásticas formadas por machados cruzados no envelope do disco Opus Dei, que – subversão das subversões, pois sentido que os Laibach conferem à imagem nesta situação é aparentemente pró-nazi– é uma apropriação duma colagem do artista John Heartfield (o seu nome original é Helmut Herzfeld), artista alemão fundador do dadaísmo e militante comunista, autor de outras fotomontagens contra os nazis bastante conhecidas, dão a este símbolo um grafismo afirmativamente austero, intimidatório, diria mesmo acutilante e para acentuarem a carga agressiva juntam a toda esta imagética a música industrial (também ela conotada com uma certa austeridade rítmica).
A aliança de imagens conotadas com sistemas totalitários e de uma sonoridade declaradamente violenta e militarista faz com que nem sempre consiga ter vontade de acompanhar todos os trabalhos dos Laibach pois que essa sobreidentificação, esse exagero dos rituais totalitários (sobre tudo os nazi-fascistas) é um impedimento à minha total aceitação e usufruo dos trabalhos dos Laibach.
O recurso à sobreidentificação em muito momentos chega a ser declaramente kitsch, por vezes absurda até, e é nestes momentos que me apercebo que tudo nos Laibach é encenação, tudo é uma é paródia, e a repetição exagerada dos rituais e imagens totalitários, o uso de fardas nazis, são um teatro, quase caricatural daquilo que está a ser apresentado/representado, como escreveu Alexei Monroe sobre a acusação que se faz sobre os Laibach serem nazi-fascistas: Se olharmos para figura de Jorg Haider vestido de jeans, pode-se dizer que os actuais (pós-) Fascistas com acesso ao poder e influência geralmente fazem grandes esforços para evitar parecer Fascistas – a completa oposição à abordagem dos Laibach. (3) Mas apesar desta estratégia de sobreidentificação ser, julgo eu, ser uma estratégia iconoclasta, e da afirmação justa que Monroe faz de que os fascistas influentes não querem parecer fascistas, esta estratégia é problemática e há sempre o perigo de, ao reproduzir estes rituais e ao utilizar certos símbolos, motivar e incentivar eventuais apologistas de ideias nazi-fascistas, menos atentos à paródia irónica que fazem deles (e ainda assim fazem questão de estar presentes em vários concertos). Esta potencial má interpretação vem do facto de aparentemente esta banda atestar estes símbolos, embora não acreditando que os membros dos Laibach tenham qualquer ligação a movimentos fascistas, entendo que esta estratégia de sobreidentificação pode, em certas instâncias, ser perigosa porque apresenta-se na maior parte das situações extrema, ou como o João Alves tinha comentado, musculada, e quando ele usou esta expressão interpretei-a como uma certa masculinidade autoritária presente ao longo do trabalho dos Laibach. Há excepções, nomeadamente nas versões de música pop-rock, em que a paródia é clara, chegando a roçar o mau-gosto, e os fascistas não se costumam definir por gostarem de ser ridícularizados em público ou pelo sentido de humor. De qualquer maneira o recurso à imagética nazi sempre foi polémico, mas também o uso da socialista e ainda mais quando conjugadas, sendo os Laibach acusados de ser, ora fascistas, ora comunistas, e embora para um público americano e da Europa ocidental estas imagens possam ser apenas mais imagens de brutalidade quase irreais e abstractas, para o público jugoslavo que tinha sofrido a ocupação nazi todos esses símbolos eram claros símbolos traumáticos de opressão e violência, então essa germanização e o próprio uso do nome Laibach, que era o nome da cidade de Lublijana durante o domínio austro-húngaro e depois em 1943 pela Alemanha aquando da ocupação nazi, sempre foi muito problemática para as repúblicas jugoslavas que tinham sofrido na pele as nomenclaturas forçadas de localidades para alemão, os fuzilamentos, as perseguições, a exploração e, para a Eslovénia, mais do que a simples subjugação, a própria tentativa de assimilação no III Reich por exemplo.  
No início da década de 1990, com o colapso dos regimes socialistas da europa de Leste e, mais particularmente, com a desintegração da Jugoslávia, o NSK confrontou-se com o desaparecimento dos parâmetros estatais que até então lhe haviam servido de referência. (4) E com essa desintegração surgiram as declarações de independência das diferentes repúblicas, primeiro a Eslovénia que ainda esteve em guerra com as restantes durante seis dias, em seguida a Croácia votou pela independência, em 1992 chegou a vez da Bósnia, então estalou a guerra naquele território.

Devido ao meu sentimento de confusão, que de resto me parece ser uma das (se não mesmo a essencial) intenções dos Laibach, vou optar por comentar mais profundamente um único álbum, NATO que se refere inteiramente à desintegração da Jugoslávia, a guerra que lhe sucedeu e sobre os interesses económicos e políticos exteriores associados. Ainda que tudo o que envolve a situação da guerra na ex-Jugoslávia me pareça muito confuso e extremamente complexo, como nos deve parecer a todos, este é o álbum dos Laibach que me parece mais interessante porque é o que, na minha opinião, tem a direcção mais definida e mais clara e porque partilho das posições tomadas neste álbum, ou pelo menos tomo-as como próximas das minhas. 
A capa do disco em tons de azul e metalizado apresenta uma figura feminina desnudada que me faz lembrar uma mistura das usadas por Mucha com a personagem do robot do filme Metrópolis de Fritz Lang sobreposta com o logotipo da NATO (North Atlantic Treaty Organisation, em português OTAN), remetendo-nos para uma cenário de ficção científica e, de alguma maneira, pós-apocalíptico. Usando a mesma técnica de subversão da música pop que, tomando novamente como exemplo os The Residentes no álbum The Third Reich’n’roll, e os próprios Laibach antes em Opus Dei, neste disco são reinterpretadas várias músicas da pop ocidental sobre o tema da guerra, a colonização cultural, e os medos futuros (5), entre outras Final Countdown (Europe) e In the army now (Status Quo), e foram dadas a essas músicas uma conotação mais bélica e marcial, subvertendo por vezes a intenção original, tanto pelo uso da música como pela alteração das letras: se na versão original dos The Temptations da música War à pergunta Guerra! Para que é que isso é bom? a resposta é: Para absolutamente nada (6), os Laibach na sua versão apresentam inúmeras razões; se na versão original dos Pink Floyd de Dogs o War temos solos de guitarra e saxofone criando um ténue sentimento de empatia pela música, os Laibach dão-nos música techno com laivos de drum’n’bass finalizado a música com coros e arranjos sinfónicos, a voz do vocalista é áspera, dando-nos um sentimento de crueza e agressividade, os ritmos são mecânicos fazendo-nos sentir uma espécie de autómatos; a versão do americano J. D. Loudermilk da música Indian Reservation é alterada para National Reservation e em vez de falar sobre a agressão e aniquilação das comunidades índias nativas dos EUA, os Laibach falam da agressão económica e cultural e dos interesses dos países capitalistas do Ocidente naquela área dos Balcãs, sendo que as estratégias em ambos os casos são as mesmas (e os agressores no fundo também).
No press release do álbum constava esta frase: Agora os Laibach levam a NATO onde a própria NATO tinha recusado ir. (7) Pois bem, a NATO desejosa de ir onde se tinha recusado ir, esperava o momento certo para lá ir, e isso viu-se em 1999 nos bombardeamentos à Sérvia. Os Laibach recapitulam a NATO como um regime ideológico, e ligam o sistema económico que ela representa à cultura pop (8), daí o recurso às músicas que constam neste álbum. E se estas músicas produzidas maioritariamente pela, na e para a cultura de massas ocidental capitalista são na maioria dos casos anti-bélicas os Laibach transformam-nas certeiramente em músicas agressivas, opressoras, assustadoras, realmente militaristas e pós-apocalípticas, como está presente na versão de 2525, original de Zager and Evans: (...) In the year 9595/ I'm kinda wonderin' if man is gonna be alive/ He's taken everything this old earth can give/ And he ain't put back nothing/ Now it's been ten thousand years, man has cried a billion tears/ For what, he never knew, now man's reign is through/ But through eternal night, the twinkling of starlight/ So very far away, maybe it's only yesterday (9). Este álbum faz uma analogia com o lado obsceno da retórica democrática da NATO, lado que veio a destaque em 1992 com a exposição das suas operações Gladio em Itália (10) que consistiam numa estrutura de apoio a exércitos secretos [que se] manifestou (…) diferentemente nos diferentes países, de acordo com a situação política interna de cada um. Em Itália, onde o partido comunista emergiu da guerra com prestígio pelo seu papel na resistência ao nazi-fascismo, forte intervenção na vida política do país e implantação eleitoral, o Gladio teve um forte envolvimento na manipulação e desestabilização da vida política do país, que contribuíram para o enfraquecimento do sistema democrático. (…) em Espanha, Portugal, Grécia e Turquia, com acentuado ascendente das forças armadas na vida política desses países, os exércitos secretos intervieram no combate às oposições aos respectivos regimes. (11) Os Laibach apresentavam-se então neste álbum ainda mais militaristas e bélicos que a própria NATO se apresentava na altura, mas conscientes dos interesses económicos e geopolíticos naquela zona da Europa. A escolha de elementos musicais disco não foi ingénua, segundo os Laibach os ritmos “disco” estimulam mecanismos automatistas e formatam a industrialização da consciência de acordo como o modelo de totalitarismo e produção industrial (12), a ideia que me parece que aqui está presente é que estes ritmos podem ser escapistas, até alienadores de consciência e por isso facilmente instrumentalizados de acordo com os programas dos regimes políticos (quem diz políticos diz económicos). Essa sensação está sempre presente no álbum, porque apesar das letras serem sobre a catástrofe e as razões da guerra, elas contrastam com os sons techno e jungle (antecedente do drum-n,bass) que por vezes no álbum são quase dançáveis, fazem-nos sentir deslocados da realidade e que permitem também associar toda uma cultura hedonista e de exaltação da um liberdade inócua muito em voga nos anos 90. Então os Laibach fizeram a junção perfeita da música pop anti-bélica e os interesses bélicos da NATO como diz Monroe: O tipo de música abrangida no NATO é a banda sonora de fundo da realidade dos estados da NATO, e o álbum desenhava uma ligação entre a expansão territorial da NATO como a agência militar do “capitalismo real” e a expansão territorial relacionada com a musica popular ocidental. (13)

Os assuntos tratados neste disco dos Laibach fez-me lembrar do trabalho do artista bósnio Andrej Đjerkovic que conheci recentemente através do projecto Souvenirs from Europe da editora Ghost, o trabalho em questão é uma fotografia tirada em 1997 nas ruínas do Museu Olímpico de Sarajevo com a bandeira da União Europeia no lugar de uma janela, colada com a mesma fita-cola que os habitantes dessa cidade punham nos vidros para não se partirem nos bombardeamentos durante o cerco a Sarajevo. Na fita-cola estavam impressas as palavras Fragile/ Careful. Para mim esta imagem é claramente demonstrativa das intenções da NATO e da UE em relação às repúblicas ex-jugoslavas: rapina, oportunismo e expansão territorial. Embora os Laibach no seu álbum não sejam tão categóricos e exista sempre um tom irónico e dúbio no seu trabalho, penso que esse álbum fala precisamente destas problemáticas. Na música War, à pergunta What is good for? os Laibach enumeram uma lista de boas razões: Mobilization/ Science/ Religion/ Domination/ Communication/ Teleportation (…) GM, IBM, Newsweek, CNN/ Universal European/ITT, VCR/ Industry/GM, IBM, Newsweek, CNN/ Universal European/ ITT, VCR/ NGM/Siemens, Sony/ Universal European/ Volkswagen. (13) Estas respostas demonstram bem as intenções da NATO e da União Europeia. Antes do colapso da Jugoslávia a última linha da NATO era na Alemanha e as repúblicas jugoslavas eram um alvo aliciante pela proximidade com a Rússia. Também para a União Europeia estas repúblicas economicamente estáveis e desenvolvidas podiam ser uma ameaça aos interesses de expansão capitalista, mas um alvo aliciante na medida em que eventualmente com o colapso da estrutura que as unia seriam um alvo mais fácil, e muito provavelmente futuros candidatos à integração na União Europeia (o que se verificou mais tarde), daí a inacção da comunidade internacional, que poderia ter mediatizado diplomaticamente o conflito, perante a escalada de violência e da intensificação das provocações nacionalistas (de que se aproveitaram todos os interessados desta guerra) para que as repúblicas se destruíssem mutuamente e assim fosse mais fácil intervir económica e politicamente nesses territórios tanto geográfica como economicamente tão importantes na Europa. Como se viu em 1999 houve uma agressão militar directa à Sérvia para a alegada protecção dos Kosovares albaneses causando a destruição do que restava do sistema produtivo daquele país e de inúmeras infraestruturas civis, pontes, casas, fábricas e assim a União Europeia pôde conseguir contractos para as suas empresas na reconstrução destes países, usando muitas vezes estes contractos para lavagem de dinheiros e a NATO por sua vez conseguiu aproximar-se da fronteira com a Rússia assentando as suas bases mais tarde no Kosovo. Estas questões que estão presentes no álbum NATO, tive oportunidade de aclarar durante uma conversa por e-mail com o artista Andrej Đjerkovic. E esta intenção de colonização cultural e económica está bem presente na música National Reservation: They took the whole eastern nation/ Moved us on these reservations/ Took away our ways of life/ A hand grenade, and a carving knife/ Took away our native tongue/ And taught their/ English to our young/ And all the things we made by hand/ Are nowadays made in Japan. (14)
Porque quando a guerra nos Balcãs estalou eu era uma criança, pouco consegui perceber, apenas me lembro de imagens horríveis de pessoas em fuga, filas de tractores e atrelados apinhados de gente, militares, destruição e sofrimento, e aquilo estava a acontecer na Europa, isso assustava-me mas não percebia, parecia irreal, nesse sentido foi essencial esta conversa com este artista e escutar e tentar compreender este disco dos Laibach, NATO, mas também, por exemplo a leitura do livro de banda desenhada do Joe Sacco Safe area, Goradze, ou do Regards from Serbia do Alexandre Zograf, ou do Fatherland da Nina Bunjevac, entre outros, embora muito fique por compreender, porque tudo me parece incompreensível.
Hoje sou mais crescido e, porque os mass media apenas confundem e pouco nos informam, também tenho dificuldade em perceber o que se passa na Ucrânia, no Iraque, na Síria… ou o que se passou no Chile, no Irão, na Guatemala, em Portugal…


originalmente publicado no fanzine Preto no Branco #4 em Novembro de 2014

1WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 1
2 WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 6
3 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 209
4 WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 1
5 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p.239
6 WHITFIELD, Norman, War in Psychedelic Shack, Motown, Detroit, 1970
7 LAIBACH, in Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 239
8 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 240
9 EVANS, Rick,  In the year 2525 (Exordium and Terminus), RCA (edição original em 7”), 1969
10 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 240
11 ROSA, Rui Namorado, Nato: A outra face da Nato in http://www.searanova.publ.pt/pt/1715/dossier/122/, consultado em 2 de Outubro de 2014
12 LAIBACH, in Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 239
13 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 241
14 LAIBACH, National Reservation in NATO, Mute, Londres, 1994


Sonny Sharrock

Sonny Sharrock · Black Woman · Vortex · 1969 Encontrei o Sonny Sharrock (1940-1994) por acaso, estava a ler um texto na Wire de um tal Tony Rettman em que ia descrevendo a sua descoberta da cena hard-core e punk norte americana e depois a descoberta do free-jazz, e equiparava a energia do hard-core com um tal Sonny Sharrock. Fui procurar, os discos não existiam à venda e na net eram caríssimos, fiz um download, Black Woman, foi o disco que saquei. Não consegui ouvir todas as músicas imediatamente, algumas demoraram a inscrever-se. Não são todas avassaladoras no início e isso custou-me, porque não estava a encontrar a fúria do hard-core facilmente. Mas com pouco esforço elas entranharam-se, e de que maneira. Sonny Sharrock é um guitarrista com uma aproximação ao instrumento muito característica, já tinha ouvido a sua guitarra, mas não sabia onde. Afinal tinha sido no disco Tauhid de Pharoa Sanders, se o escutarmos com atenção vamos encontrar aí algumas semelhanças com a guitarra de Black Woman. Este é um álbum demolidor, orgasmicamente demolidor. Aqui guitarra de Sonny Sharrock e todo o conjunto de instrumentos é de facto muito forte, mas para além disso a energia que Linda Sharrock (1947), a então mulher de Sonny, emprega neste disco é de uma ferocidade transcendental, de uma entrega corpórea incrível. É a voz elevada a instrumento, que o é sempre, mas aqui está num nível que se afasta do acompanhamento, é verdadeiramente avassaladora. Em todas as 4 músicas deste álbum em que aparece as voz de Linda, apenas Bialero, contém palavras, nas restantes a voz é apenas som, contribuindo, na minha opinião para que a voz seja realmente elevada a instrumento, porque não ilustra a música com palavras, com ideias e imagens, é puramente sonora. E mais que a voz, sentimos a presença de um corpo no seu todo, é todo um corpo de uma mulher que canta, que se torna quase insuportável, a tenção que há no grito é de raiva, de catarse mas também é sexual, e isso é tão poderoso, tão forte que quase sentimos que não devíamos estar a ouvir esta voz. Na música Portrait of Linda in Three Colours, All Black temos o expoente máximo do que se descreve atrás no texto, é uma música com um ritmo quase dançável, à medida que vai evoluindo parece que estamos a presenciar um ritual de ascese, os instrumentos entram formando uma malha instrumental densa, levando tudo à frente, depois a voz de Linda impõe-se e essa energia é exponencialmente catártica. Peanut é uma música abismal, a voz de Linda parece que vai caindo num vórtice juntamente com os restantes instrumentos, em cascata. Este é um disco de free-jazz furioso, com uma energia visceral, mas a música Bialero é de uma doçura cândida, luminosa, de uma beleza cristalina que contrapõe todo o caos em que aparentemente está mergulhado o resto do disco. Eu não sei se a ideia de gravar um disco chamado Black Woman foi de Sonny ou de Linda, de facto o final dos anos 60 do século passado foram anos de grandes lutas dos Black Panthers contra o sistema segregacionista dos EUA, e este álbum julgo que vem de encontro a essa luta, mas mais que ser um álbum com músicos afro-americanos, é um disco que se emancipa e coloca a mulher negra no centro da questão, e isso é admirável. Se este é o grito da mulher negra, é um grito extremo, livre e poderoso! Este é um álbum que apesar de todo o noise, de toda a amalgama instrumental é um álbum espiritual, emocional que recupera muita da tradição do blues, dos ritmos africanos, e na minha opinião é um encontro muito feliz, este.

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

Recorri, obviamente à internet, para sacar o disco, e para me informar melhor sobre ele.

1º episódio

 

 

Elis Regina . 20 anos Blue, Elis, Phonogram, 1972
Jair Rodrigues . Viola Enluarada, Viola Enluarada / Chão, Philips, 1968 retirada da compilação Os maiores sucessos do Brasil, Reader’s digest, 1980
Gilberto Gil . Era Nova, Refavela, Philips, 1977
Sandra Sá . Olhos Coloridos, Sandra Sá, RGE, 1982
Solange . Rise, A seat at the table, Columbia, 2016
Holger Czukay & U-she . Child, Time and Tide, Dignose, 2001
Gil Scott-Heron . Me and the devil, I’m new here, XL Records, 2010
Hype Williams . ??
Lena d’Água . Liamba, Perto de Ti, Valentim de Carvalho, 1982
Roxy Music / Brian Ferry . Over you, Street Life - 20 Great Hits, EG, 1986
Jarboe with Larry Seven . Liquid Bébé Psychedalia, Beautiful People Lda, 1993 retirado da reedição da Atavistic de 2004
A Musical Anthology Of The Orient - Afghanistan . Ancient Chant of Kabul, Bärenreiter-Musicaphon / Unesco, ??
Marguerite Taos Amrouche . Chant d’exil, Chants Berbères De Kabylie, BAM, 1975
Meredith Monk . Fields / Clouds, Book Of Days, ECM, 1990
Penny Rimbaud . Poem 12, Poem 15 e Poem 18, Acts of Love, Crass Records, 1984
Else Marie Pade . Illustrationer: Kong Vinter, 1995 extraído da compilação Electronic Works 1958-1995, Important Records, 2014
Flux of Pink Indians . The Stonecutter, Uncarved Block, One Little Indian, 1986
Brian Eno . Shadows, Ambient 4 (On Land), Editions EG, 1982
Steve Reid Ensemble . Drum Story, Spirit Walk, Soul Jazz Records, 2005
Matana Roberts . How must would you cost, Coin Coin chapter One: Gens de Couleur Libres, Constellations Records, 2011

sábado, 27 de janeiro de 2018

Mal D'vinhos


Mal D’vinhos · Disk’é cultura · pimba’s autoroute “discos e petiscos” · 2004  Os Mal d’vinhos nasceram no princípio dos anos 2000 algures entre as Caldas da Rainha e o Bombarral. Apenas vi dois concertos (de que me recorde), um no Campo de futebol da Mata, nas Caldas da Rainha, que não tinha som, as vozes do Smith e Nadine não se ouviam, o som da bateria comia o acordeão e a guitarra, mas isso não impediu de estar cheio e de as pessoas dançarem e cantarem. O outro, acho que foi um dos últimos concertos da banda, numa discoteca no centro da cidade, ouvia-se melhor, e também estava cheio. Os Mal d’vinhos eram conhecidos por tocar em restaurantes, garagens, tascas e bailes improvisados. Infelizmente não tenho nenhum CD deles, tenho um CD-r copiado de um outro da Susana Borges (que também ele é um CD-r, mas oficial, ou seja adquirido com a capa aqui reproduzida). Os Mal d’vinhos eram compostos por vários músicos: Argénis no acordeão, Huguinho na bateria, João Buga na guitarra, José Smith na voz, Luis Carreira no Baixo, o Mané nos teclados e a Nadine Jacinto também na voz. Para mim os mal D'vinhos confundiam-se com o Focolitus, para além de alguns membros partilhares ambos os projectos musicais, toda a estética era idêntica, para além de que ambas as bandas escapavam ao facilitismo e tentavam mesclar vários géneros musicais sempre com um pendor politizado bastante marcado relacionado com uma atitude DIY e punk, até anarco-punk no caso dos Focolitus. Esta banda pretendia ser um grupo de baile de música popular ligeira. Não conseguiram, como era óbvio, nunca iriam conseguir, aliás. Não conseguiriam porque a música que praticavam estava a léguas de ser suportada pelo público desse tipo de acontecimento, ainda que hajam músicas que poderiam funcionar nesse contexto como Dizem que és ou Música estranjeira do disco Voto em branco porque não há tinto, que são músicas produzidas com algum brio que as pudesse catapultar para esse mundo e porque de facto parecem ter uma estrutura muito próxima da música de conjuntos de baile como os Diapasão ou que fazem mesmo lembrar alguns temas de um Dino Meira ou de um José Malhoa, ou até de um Quim Barreiros. Ainda assim esta música não iria ser suportada pelo público dos bailes e festas da aldeia. Como Os Mal d,vinhos diziam na música A dignidade de um artista: ¶ Mas porque eu sempre achei que poesia é para aleijar/ a minha mercadoria eles não quiseram comprar. Assim, com as letras ácidas e cheias de humor nenhuma pessoa que tenha estima ou frequente bailes de música pimba iria conseguir aceitar tamanha ironia, a não ser que estivesse completamente embriagada. De qualquer maneira hoje em dia a música das festas e baile das zonas rurais que os Mal d’vinhos ironizam (embora a música ligeira atravesse vários espectros sociais e diferentes zonas demográficas e geográficas) está extremamente influenciadas pela música que foi subindo do hemisfério Sul para aqui, falamos aqui do kizomba, do funaná, do kuduro que vieram destronar aquela música popular que se desenvolveu nos anos 80 e 90 e se cristalizou no termo Pimba. Hoje em dia a música pimba é uma espécie de multiculturalismo disfarçado e quem não perceber isso está a fantasiar com aquilo que é um baile de aldeia. Um baile de aldeia hoje já tem DJs residentes, uma tenda de música electrónica até de manhã, esquemas de dança, zumba, tanto se tocam as músicas dos Xutos e Pontapés como do Nelson Freitas, as bandas apresentam um espectáculo verdadeiramente multimédia com projecções de video e outras engenhocas tecnológicas de ponta, ou seja as festas da aldeia são muito mais heterogénias na fauna e nos espéctaculos do que há 15 anos, mas isso não significa, infelizmente, que tenham subido o patamar da qualidade. Voltemos aos Mal d’vinhos, este disco, Disk´é Kultura mistura muito bem a energia e a sonoridade do punk, e alguns elementos da tal música ligeira portuguesa. Mas essa mistura é feita com esmero, com inteligência, não vive da piada fácil, da brejeirice ou da misoginia irónica. Esta estratégia de tentativa de penetração nos mecanismos da industria da música popular ligeira, mimetizando em certos aspectos as suas estruturas musicais mas com o intuito de fazer uma crítica mordaz e sarcástica dessa própria indústria ou seja, de a corroer por dentro, é uma coisa que me fascina, ainda que na verdade este projecto não tenha conseguido penetrar verdadeiramente nessa esfera capitalista. As músicas deste disco falam sobre a tacanhez, a avareza e os interesses políticos, como em Ambiçum Pulítica ou Baile da Bófia, a decadência da indústria musical que só produz alienação como em A dignidade de um artista, a celebração da estética Tunnig como exponencial de um machismo (frustrado). Preste-se atenção, por exemplo, à letra da música Tunning, Tunning: ¶ Sou um tipo popular/ Sempre a abrir, civilizado / Não percebo quando ela diz / que sou um bocado frustrado (…) Seguia pela estrada fora com os alerons ao vento/ Para por estas luzes, vendi meu querido jumento/ O meu mega bote chamado Viagra/ extensão do meu sexo que já não consagra (…) Conheço todos os bordeis, de qualquer Nacional/ O que é que querias bacano? É assim que se faz em Portugal. No conteúdo das letras percebe-se que os Mal d’vinhos nunca poderiam resultar no contexto dos bailes de música ligeira, ainda assim conseguiram (num contexto de um público alternativo) fazer potenciais megasucessos de Verão, com letras e melodias catchy que surpreendem pela sua incrível capacidade de se trautearem e de se colarem ao ouvido. Experimentem ouvir este disco e reparem se depois não vão ficar a cantarolar os refrões. Para além da música outra coisa que sempre me fascinou foi a imagem gráfica associada a este projecto, desde os cartazes às capas dos discos. Parece-me que quem os produzia eram o José Smith e a Nadine Jacinto Rodrigues. Extremamente corrosivas, as colagens e instalações de Nadine, de que me lembro, recuperavam a estratégia Dadaísta e encontramos ligações com as colagens de Hannah Hoch e também com a instalação de ocupação espacial de Kurt Schwitters, a Merzbau. Smith usava a ilustração e colagens que davam uma estética punk cómica ao material gráfico da banda, aliás podemos ver o trabalhos dele nos cartazes para a ATR, no Jornal Mapa ou nas várias BDs que tem feito para ChilicomCarne, ou auto-editadas. Esta obsessão pelo preenchimento do espaço com uma estética punk, funcionavam particularmente bem com a música, que se apresenta orgânica, cómica, popular, corrosiva/corroída, mas sempre, sempre apresentada de maneira inteligente, sem ceder à parvoíce bacoca e a mensagens vazias. Obrigatório!

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

Recorri à internet para informações genéricas sobre os membros da banda e para ver os vídeos de concertos no Youtube.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Munir Bashir

Munir Bashir · Luth Classique, ‘UD Iraq · Marconi/Emi · 1974   Encontrei este disco da colecção Arabesques por acaso numa loja em Lisboa por 1 euro (!). Na verdade não sou grande conhecedor de muita música árabe e do Médio Oriente. Dificilmente consigo distinguir música feita no Irão da música feita no Iraque ou na Turquia, as diferenças estão lá e percebem-se quando escutamos a música, mas não consigo dissecá-las e distinguir as diferenças que as distinguem ou classificá-las segunda a sua origem geográfica sem uma atenção profunda e estudada, mas essa música sempre me fascinou. Munir (ou Mounir) Bashir (1930-1997) nasceu em Mossul no norte do Iraque. Não podemos avançar sem comentar, mesmo que muito simplificadamente, o contexto político do Iraque e da região, até porque, de certa maneira, é isso que me faz aproximar desta música. Não que me fascine a cultura apenas porque foi e é constantemente massacrada pelos interesses económicos do Ocidente onde vivo, mas porque me parece uma cultura riquíssima, e esta música de Munir Bashir, tem algo de espiritual, de puro (não falo do Outro exótico e da ideia de uma pureza que aí possa residir, ou de musica religiosa), quando escrevo puro refiro-me à qualidade simples e honesta da musicalidade deste artista, e quando escrevo espiritual, é porque a esta música tem algo de celestial, qualquer coisa de etérea, de meditativa, que flutua. Voltemos ao contexto político: O Iraque está no centro da origem da civilização, não esqueçamos que foi naquela região que se desenvolveu a Mesopotâmia entre os rios Tigre e Eufrates, portanto é uma região fértil e cheia de potenciais recursos hídricos e sabemos, desde há várias décadas, de recursos de petróleo e gás. O que é hoje o Iraque pertencia ao vasto Império Otomano que foi destruído e fragmentando após a I Guerra Mundial. Nessa altura os vencedores da Guerra dividiram esta região e criaram monarquias  e estados fantoche que são administrados pela Inglaterra como é o caso do Iraque. A partir daqui intensifica-se a exploração dos recursos das pseudo colónias europeias da região, e o Iraque entra numa instabilidade política constante, atiçada pelas grandes potências mundiais como foi e é costume. Em 1968 dá-se um golpe de estado que derrubou a república e o presidente Abdul Rahman Arif, colocando os baathistas no poder. O Partido Baath Socialista Árabe, que formou governos tanto na Síria como no Iraque (apesar de existirem divergências em alguns aspectos), defendia um socialismo com influências pan-árabes, a secularizão do estado e a nacionalização do petróleo entre outros interesses económicos fundamentais. E aqui é que tudo se tornou insuportável para o Ocidente que assim deixaria de ter controlo directo na extracção e comércio de petróleo. Esta tem sido aliás, a verdadeira problemática na região do Médio Oriente. Não estou a defender aqui Sadam Hussein (que foi deposto na sequência da invasão do Iraque pelos EUA em 2003, segundo o argumento de que haviam armas químicas, que nunca foram encontradas), mas as suas políticas serviam de tampão à radicalização dos conflitos pseudo religiosos (que no fundo, quer me parecer, são económicos) que resultaram na formação do Daesh e na Guerra “civil” na Síria e no Iraque. Regressemos à música, que é o que nos traz aqui: Munir Bashir era de uma família de músicos de origem Sírio-cristã, inclusivamente o seu irmão, Jamir Bashir, também fez gravações para esta colecção. Nasceu em 1930, estudou violoncelo e violino no conservatório de Bagdad e estudou profundamente a música árabe até às suas raízes de há 6000/9000 mil anos atrás e que foi sempre uma grande influência e que soube mesclar perfeitamente com músicas de outras regiões do globo. Fixou-se em Budapest no principio dos aos 60 onde se doutorou em Musicologia. Em 1973 foi nomeado para o comité da cultura do Iraque, o regime Baath ainda não estava consolidado nessa altura e fez de Bashir uma figura de integração da minoria cristã. Além disso devido à sua reputação internacional, Bashir que sempre se disse apolítico foi escolhido para representar as diferentes etnias, religiões e grupos políticos do seu país. Bashir era apolítico, mas sempre se demonstrou atento à política, com uma visão das consequências do desenvolvimento da história muito lúcidas, muito críticas, mesmo quando falava de música, falava sobre política. Quando Bashir falava sobre Michael Jackson e sobre Bach, ela falava da agenda política por de trás da música pop: Agora esta herança (refere-se á música de Bach, de Verdi) está em perigo, e isso tem a ver com política. Existem forças políticas que querem destruir as pessoas, como uma máfia, que quer destruir o espírito das pessoas (1). Eu até gosto de dançar ao som de Michael Jackson e de outros músicos como ele, divertem-me bastante, mas conseguimos perceber aqui a ideia de que o que Bashir quer dizer é que a música e outras produções culturais podem de facto ser uma arma geopolítica. Bashir ainda acrescenta: ¶ eu acredito que existe um poder mundial, como uma máfia, que quer destruir as pessoas. A Europa, produziu para si própria uma nova cultura, em que as máquinas reinam de maneira suprema, e o Homem não consegue existir sem máquinas. Não há espírito nesta cultura. Eu não tenho nada contra a tecnologia - deixemos isso claro- mas não se pode destruir o Homem. A qualidade humana, através da arte, da filosofia e da música, é necessária. Acredito que haverá um retorno à cultura, mesmo que isso leve anos. Nós destruir-nos-emos, ou, com o espírito, o amor, e a música, recriaremos a cultura. (2) Munir Bashir era declaradamente céptico em relação à música electrónica, mas quer me parecer que ao que ele se referia era à massificação do fenómeno musical, a música electrónica não é uma moda que se tornou obsoleta e sem interesse passados 20 ou 30 anos, mas avancemos. Essa posição dita apolítica, eu diria antes apartidária, não o impediu de gravar para a ETERNA, uma editora da República Democrática Alemã em 1980, e de dar concertos e viver em países Socialistas europeus entre outros. Munir Bashir era conhecido como O Rei do Oud, o instrumento que tocava. O alaúde oriental ou ‘UD é o antepassado de todos os alaúdes e da guitarra. Desde a antiguidade, era honrado pelos povos do mediterrâneo oriental, da Mesopotâmia e da Ásia. Antes do nascimento do Islão, os árabes da “Jahiliyya dispunham de alaúdes ancestrais. A partir do séc. VI foram descritos os primeiros Barbat e ‘UD utilizados em Meca e em Medina, depois em Damasco e no seio do Califado Omeyyade. (3) O oud é um instrumento de 4 cordas em forma de pera, ou de gota. Um dia o Tiago da Neta quando estava a tocar um oud disse-me qualquer coisa como: ¶ Vês, o oud não tem trastes no braço, por isso é que tem possibilidade infinitas. Eu não sabia disso, na verdade percebo zero de instrumentos musicais e de notas, mas de facto aí percebi que sem os trastes abrem-se inúmeras notas, porque não há condicionamento na posição dos dedos no braço do instrumento. E também a improvisação é muito mais livre. Bashir era mestre na improvisação no sistema Maqam que significa lugar, localização, posição ou como o músico informa: ¶ um termo árabe que significa, literalmente, Assembleia sagrada, assembleia de um rei ou de um príncipe, ou, por extensão, um lugar sagrado (4), que é um sistema melódico árabe que permite uma variação melódica muito abrangente. Com Munir Bashir, o oud veio revelar-se um instrumento com potencial de ser tocado a solo, sem acompanhamento. Este disco foi editado pela Pathé Marconi e pela EMI, gravado em Beirute em 1972 e em Bagdad em 1973 patrocinado pelo Ministério da Informação no Iraque e apoiado pela Iraqi Airways, o que revelava uma vontade de difundir e suportar a cultura daquele país. Coisa que no nosso tempo parece praticamente impossível devido ao embróglio que se gerou naquela região como consequência das constantes interferências estrangeiras e ingerências internacionais. No lado A deste disco está registado um tema chamado Meditaions sur le Maqam Classique Chedd-’Araban e no lado B Meditations sur des Nagham-s Traditionelles D’Iraq. São duas peças lindíssimas de improvisação que tanto tem partes mais enérgicas com crescendos de tenção como partes mais meditativas, mas sente-se que há ponderação, há uma ligeireza flutuante que tornam estas peças absolutamente geniais, convidando à meditação, à viagem ao som das cordas. Por vezes há quase uma sensação performática, que faz com que tenhamos vontade de dançar, ou pelo menos transformar aquelas peças musicais em expressão corpórea, ainda que o que ressalte é a dimensão etérea deste som que é também magnetizante, absorvente, sinuoso por vezes. É curioso sentir-se a influência que esta música árabe deixou no flamenco e na música ibérica de guitarra. Munir Bashir tinha sempre presente a necessidade de partilha, de encontro entre as várias culturas e como disse tão assertivamente:  ¶ Temos de trabalhar culturalmente todos juntos. (5) 

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

1 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 53 , tradução livre do inglês.
2 Ibidem.
3 CHABRIER, Jean-Claude, ‘UD, le luth arabe, in Luth Classique, Iraq, Munir Bashir, ‘UD, collection arabesques, EMI e Pathé, 1974, tradução livre do francês.
4 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 51 , tradução livre do inglês
5 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 54 , tradução livre do inglês.
Recorri à internet para obter algumas informações genéricas, nomeadamente sobre a História do Iraque, do sistema Maqam e sobre o instrumento oud.

Pega Monstro

Pega Monstro · Alfarroba · Upset The Rhythm · 2015  As Pega Monstro são Julia e Maria Reis. Confesso que só escutei a sua música com atenção, quando saiu este disco, Alfarroba. Foi uma boa surpresa. Desde logo gostei do nome do disco, alfarroba faz-me lembrar bom tempo, calor, aquele cheiro tão característico traz-me boas lembranças, faz-me lembras os Verões a trabalhar na fábrica de rações. Costumo pensar que as Pega Monstro têm um som que faz lembrar uma mistura muito refinada de The Breeders com Harry Pussy. Alguns temas são mais pop e daí evocar aqui as The Breeders. Lembro-me de Harry Pussy por causa da distorção e da energia, se bem que num concerto podemos sentir esse som trash com mais intensidade. A música das Pega Monstro apresenta-se fresca e solta, rock que nos prende instantaneamente, qual pega monstro sonoro. As letras ultrapassaram de alguma maneira a puerilidade dos discos anteriores. Se havia algum interesse nas estórias sobre apanhar doenças em festivais de Verão porque isso era feito com honestidade, com uma veracidade desarmante, agora as Pega Monstro apresentam músicas com um pendor mais melancólico. As letras sobre desencontros e questões emocionais são mais trabalhadas, a escatologia felizmente continua lá, mas parece mais amargurada e na verdade é em músicas como És tu, já sei e És tudo o que eu queria que podemos encontrar essa melancolia, mas na minha opinião ela vai assombrando o resto do disco, aqui e ali sente-se alguma amargura, tanto nas palavras como em algumas partes do som, que se vai moldando e não é apenas electricidade furiosa. A música às vezes é quase sonegante, mais arrastada, contribuindo para essa espécie de letargia emocional. Se em registos anteriores as Pega monstro apresentavam músicas que destilavam um som punk rápido, a guitarra e os pratos não tinham descanso e cuspiam-nos na cara, neste álbum há mais contrastes, contribuindo essa estrutura do disco para que as músicas mais electrificantes possam amadurecer, tenham um outro peso, e tenham a possibilidade de se tornar mais poderosas, mais exploratórias até, porque há momentos de paragem e esses momentos mais ponderados servem para ensaiarem essa tal viagem melancólica, essa sensação agridoce de travagem que é também de abandono, ma sé um abandono reflectido, é um tempo de necessária introspecção. Ao ler algumas coisas sobre as Pega Monstro na internet, reparei que numa entrevista referiam o disco Black Woman do Sonny Sharrock como uma influência ou pelo menos como um disco a ter em conta no seu percurso, achei curioso, porque ao ler isto, vão se estabelecendo ligações, desenhando constelações improváveis, mas que depois de feitas, acabamos por encontrar sonoridades que se vão aproximando, e isso é uma coisa maravilhosa, não só na música como na vida. Além disto, está aí a sair um disco novo das Pega Monstro. Vamos escutar com certeza! 

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2016

 Recorri à internet para recolher informações genéricas e para ouvir músicas mais antigas.

Hype Williams

Hype Williams,??, ??, LP, ?? Em 2010 fui ver um concerto de um projecto musical formado por um casal inglês (teriam uma relação conjugal?) que vivia em Berlim (ou coisa assim, pouco importa) a um bar de praia. O Bar chamava-se Bambi e ficava na praia de S. Pedro de Moel no concelho da Marinha Grande, este evento foi organizado pelo colectivo a9)))), então em franca expansão. Esse projecto musical chamava-se Hype Williams e eu não estava preparado, não fazia a mínima ideia do que era aquilo. Tocavam sentados frente a frente, na mesa onde estava a maquinaria que fazia o som, queimavam paus de incenso, havia uma foto emoldurada de um desconhecido e caía até ao chão um pano com a imagem impressa de um guia religioso do tipo Rastafari dado a ocultismos. Adorei o concerto, mas não percebi nada do que era aquilo. Comprei logo o disco que entretanto nunca mais vi à venda. Quando o concerto acabou, fui à casa de banho e alguém me disse algo do género: "Isto é o que deveria ter sido o trip-hop". Talvez, pudesse ou devesse ter sido alguma coisa próxima daquilo que tínhamos acabado de ouvir. A música deles é uma fusão de sons hip-hop, soul, pop, excertos de músicas de videojogos e discursos messiânicos e dub, tudo misturado em camadas que se sobrepõem, avançam e retrocedem, aparecem e desaparecem, dando a impressão que estamos numa espécie de alucinação musical desacelerada. Neste disco a desaceleração é quase nauseabunda, lentamente vertiginosa, pontuada por ritmos mais rápidos para que nos mantenhamos conscientes. A música rasteja pelo ar (?) e vai-se acomodando a pouco e pouco dentro de nós. Enfatizando este ocultismo e sentimento de estranhamento (que se entranha, sem dúvida) o disco não tem qualquer palavra impressa, por isso ainda hoje não sei o nome do disco, nem das músicas, nem qual é o lado A ou B (na internet não deve faltar informação, mas prefiro os Hype Williams misteriosos e obscuros). Um disco brutal (literalmente). Ouçam em 33 rotações e depois em 45, dois discos num só.

Originalmente publicado no fanzine Cleópatra #6 em Maio de 2012

Edward Artemiev


 Edward Artemiev · Stalker, The Mirror, Music from Andrey Tarkovsky’s motion pictures · Electroshock Records · 2013
Este disco não é uma banda sonora, e isso é pena. É uma recolha de vários temas compostos por Edward Artemiev (1937) para os filmes de Andrey Tarkovsky, Stalker de 1979 e O espelho de 1975. No lado B está incluído também um tema chamado Dedication to Andrey Tarkovsky e não faz parte de nenhum filme, parece ser uma homenagem ao realizador. Edward Artemiev é um compositor russo nasceu na Sibéria. Compôs essencialmente musica para bandas sonoras de filmes mas também, por exemplo, uma peça para os Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980. Fez parte da equipa que desenvolveu o primeiro sintetizador na União Soviética e foi percursor da música electrónica. Esse sintetizador era o ANS, um instrumento fotoeletrónico e microtonal, criado pelo engenheiro Evgeny Murzin de 1938 a 1958. Totalmente polifónico, podia gerar até 720 sons simultâneos, o ANS basicamente transformava os desenhos criados pelo seu usuário, numa superfície própria, em sons. Este instrumento foi inclusivamente usado nas bandas sonoras dos filmes de Tarkovsky, Solaris, Stalker e O Espelho. As peças incluídas neste disco são centrais nos filmes de Tarkovsky. Apesar do compositor e do realizador não serem propriamente amigos, a sua colaboração foi prodigiosa, mesmo que Tarkovsky não acompanhasse sequer Artemiev nas sessões de gravação. Tarkovsky não era assertivo em relação ao que pretendia da música deixando o compositor num permanente limbo de incerteza até ao momento em que se finalizava o processo de incorporação da música no filme. O realizador dizia que não necessitava de todo de um compositor (1), o que de facto queria era o ouvido de um compositor e o seu forte domínio do som (2) e chegou a dizer a Artemiev: ¶ Isto não é um concerto. Isto é uma coisa singular, excepcional (3). Tarkovsky estava interessado em sons que soassem espirituais (4) e achava que o cinema era uma arte nova, recente, e que por isso não necessitava de composições contemporâneas nos filmes, achava que ao usar alguma música estruturada seria a música de Bach por exemplo. O realizador tinha a ideia de que o cinema precisava, como uma forma de arte recente, de se interiorizar no pensamento do público, na memória colectiva como uma arte intemporal, milenar como a música e a pintura, e isso só seria possível com a introdução de peças musicais como a Paixão de São Mateus ou com a presença de pinturas e desenhos de “grandes” artistas como Leonardo Da Vinci. Mas verdade é que o trabalho do compositor revelou-se parte estruturante dos filmes de Tarkovsky e conseguem ser auto-suficientes como se pode escutar neste disco, apesar de eu lamentar que o disco apenas tenha uma selecção de temas centrais, em vez de uma apresentação mais alargada do som dos filmes, que era o que me interessava ouvir também, ainda assim é um disco mais que aconselhável, parece-me essencial. É que toda a ambiência sonora, toda esta encenação musical dos sons ambientes, às vezes abafados (comboio nos carris, água que corre ou que pinga), vem distorcer a nossa percepção visual das cenas (5). Ao escutar este disco quem viu os filmes recordar-se-á das cenas em que aparecem as respectivas músicas, mas não deixará de usufruir delas per se. Apesar dessa memória imagética, as músicas compostas por Edward Artemiev reclamam para si um lugar autónomo e não são nunca meramente ilustrativas do filme. Elas conseguem inclusivamente reforçar as sensações que teríamos se víssemos o filme, como na música Exodus, presente n'O Espelho, que acompanha a imagem do desaparecimento da condensação provocada pela respiração de alguém contra um espelho, essa imagem já por si é vertiginosa, mas se ouvirmos a música sozinha, essa sensação de vórtice parece aumentada até ao limite. Ou por exemplo, o tema Train, que no filme Stalker, faz parte da cena em que as três personagens entram na Zona e estão num veículo que corre pelos carris, aqui o som dos carris é usado como ritmo que pauta a melodia, e não precisamos de ver o que está a acontecer para imaginarmos a desolação, a vastidão, a solidão daquele lugar e que os personagens sentem. Neste tema o som abafado dos carris reimprime essa sensação. Com o avanço do tempo torna-se quase opressor, marcial, mas de uma maneira suave, inebriante, culminando novamente numa sensação abismal, quase uma náusea. Também no tema Meditation não precisamos de ver a água, para a sentir. É um tema que alaga tudo, os sons de alguns instrumentos parece trepidar, ondular, e essa sensação de imersão, de fluidez, de diluição é produzida também pela encanto da flauta. Estes são temas que convidam à meditação, à contemplação, a um estado de transe, mas não é uma música agradável, é uma música que inquieta, que perturba, assim como os filmes de Tarkovsky. O trabalho de Edward Artemiev é importantíssimo e mesmo não sabendo do impacto que a sua obra para cinema teve no Ocidente, naquela altura, não podemos deixar de encontrar semelhanças e criar laços com muitos outros músicos e compositores como por exemplo David Bowie em temas como Warszawa ou Art Decade, Popol Vuh, por exemplo, nos trabalhos feitos para o realizador Werner Herzog, nalguns discos de Krafwerk, nas partes menos barrocas da banda sonora do filme A dupla vida de Verónica realizado por Kieslowsky, composta por Zbigniew Preisner, ou até na música do genérico dos X-Files. Edward Artemiev merece uma escuta atentíssima. 


publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

1 ARTEMIEV, Eward, in https://www.youtube.com/watch?v=xjVT7MlE5rY, tradução livre do inglês.
2  Ibidem.
3  Ibidem.
4  VELICHKO, Nikita, in Masters of the universe, in Wire, Fevereiro de 2017, Londres, p. 33, tradução livre do inglês

5  NEMER, François, in Duas ficções em ruínas: Fellini Satyricon e Stalker, in As Ruínas, Cinemateca Portuguesa- Museu do Cinema, Outubro de 2001, p. 95, tradução de João Pedro Bénard .
Recorri à internet para obter algumas informações genéricas sobre o ANS.