Munir Bashir · Luth Classique, ‘UD Iraq · Marconi/Emi · 1974 Encontrei este disco da colecção Arabesques por acaso numa loja em Lisboa por 1 euro (!). Na verdade não sou grande conhecedor de muita música árabe e do Médio Oriente. Dificilmente consigo distinguir música feita no Irão da música feita no Iraque ou na Turquia, as diferenças estão lá e percebem-se quando escutamos a música, mas não consigo dissecá-las e distinguir as diferenças que as distinguem ou classificá-las segunda a sua origem geográfica sem uma atenção profunda e estudada, mas essa música sempre me fascinou. Munir (ou Mounir) Bashir (1930-1997) nasceu em Mossul no norte do Iraque. Não podemos avançar sem comentar, mesmo que muito simplificadamente, o contexto político do Iraque e da região, até porque, de certa maneira, é isso que me faz aproximar desta música. Não que me fascine a cultura apenas porque foi e é constantemente massacrada pelos interesses económicos do Ocidente onde vivo, mas porque me parece uma cultura riquíssima, e esta música de Munir Bashir, tem algo de espiritual, de puro (não falo do Outro exótico e da ideia de uma pureza que aí possa residir, ou de musica religiosa), quando escrevo puro refiro-me à qualidade simples e honesta da musicalidade deste artista, e quando escrevo espiritual, é porque a esta música tem algo de celestial, qualquer coisa de etérea, de meditativa, que flutua. Voltemos ao contexto político: O Iraque está no centro da origem da civilização, não esqueçamos que foi naquela região que se desenvolveu a Mesopotâmia entre os rios Tigre e Eufrates, portanto é uma região fértil e cheia de potenciais recursos hídricos e sabemos, desde há várias décadas, de recursos de petróleo e gás. O que é hoje o Iraque pertencia ao vasto Império Otomano que foi destruído e fragmentando após a I Guerra Mundial. Nessa altura os vencedores da Guerra dividiram esta região e criaram monarquias e estados fantoche que são administrados pela Inglaterra como é o caso do Iraque. A partir daqui intensifica-se a exploração dos recursos das pseudo colónias europeias da região, e o Iraque entra numa instabilidade política constante, atiçada pelas grandes potências mundiais como foi e é costume. Em 1968 dá-se um golpe de estado que derrubou a república e o presidente Abdul Rahman Arif, colocando os baathistas no poder. O Partido Baath Socialista Árabe, que formou governos tanto na Síria como no Iraque (apesar de existirem divergências em alguns aspectos), defendia um socialismo com influências pan-árabes, a secularizão do estado e a nacionalização do petróleo entre outros interesses económicos fundamentais. E aqui é que tudo se tornou insuportável para o Ocidente que assim deixaria de ter controlo directo na extracção e comércio de petróleo. Esta tem sido aliás, a verdadeira problemática na região do Médio Oriente. Não estou a defender aqui Sadam Hussein (que foi deposto na sequência da invasão do Iraque pelos EUA em 2003, segundo o argumento de que haviam armas químicas, que nunca foram encontradas), mas as suas políticas serviam de tampão à radicalização dos conflitos pseudo religiosos (que no fundo, quer me parecer, são económicos) que resultaram na formação do Daesh e na Guerra “civil” na Síria e no Iraque. Regressemos à música, que é o que nos traz aqui: Munir Bashir era de uma família de músicos de origem Sírio-cristã, inclusivamente o seu irmão, Jamir Bashir, também fez gravações para esta colecção. Nasceu em 1930, estudou violoncelo e violino no conservatório de Bagdad e estudou profundamente a música árabe até às suas raízes de há 6000/9000 mil anos atrás e que foi sempre uma grande influência e que soube mesclar perfeitamente com músicas de outras regiões do globo. Fixou-se em Budapest no principio dos aos 60 onde se doutorou em Musicologia. Em 1973 foi nomeado para o comité da cultura do Iraque, o regime Baath ainda não estava consolidado nessa altura e fez de Bashir uma figura de integração da minoria cristã. Além disso devido à sua reputação internacional, Bashir que sempre se disse apolítico foi escolhido para representar as diferentes etnias, religiões e grupos políticos do seu país. Bashir era apolítico, mas sempre se demonstrou atento à política, com uma visão das consequências do desenvolvimento da história muito lúcidas, muito críticas, mesmo quando falava de música, falava sobre política. Quando Bashir falava sobre Michael Jackson e sobre Bach, ela falava da agenda política por de trás da música pop: Agora esta herança (refere-se á música de Bach, de Verdi) está em perigo, e isso tem a ver com política. Existem forças políticas que querem destruir as pessoas, como uma máfia, que quer destruir o espírito das pessoas (1). Eu até gosto de dançar ao som de Michael Jackson e de outros músicos como ele, divertem-me bastante, mas conseguimos perceber aqui a ideia de que o que Bashir quer dizer é que a música e outras produções culturais podem de facto ser uma arma geopolítica. Bashir ainda acrescenta: ¶ eu acredito que existe um poder mundial, como uma máfia, que quer destruir as pessoas. A Europa, produziu para si própria uma nova cultura, em que as máquinas reinam de maneira suprema, e o Homem não consegue existir sem máquinas. Não há espírito nesta cultura. Eu não tenho nada contra a tecnologia - deixemos isso claro- mas não se pode destruir o Homem. A qualidade humana, através da arte, da filosofia e da música, é necessária. Acredito que haverá um retorno à cultura, mesmo que isso leve anos. Nós destruir-nos-emos, ou, com o espírito, o amor, e a música, recriaremos a cultura. (2) Munir Bashir era declaradamente céptico em relação à música electrónica, mas quer me parecer que ao que ele se referia era à massificação do fenómeno musical, a música electrónica não é uma moda que se tornou obsoleta e sem interesse passados 20 ou 30 anos, mas avancemos. Essa posição dita apolítica, eu diria antes apartidária, não o impediu de gravar para a ETERNA, uma editora da República Democrática Alemã em 1980, e de dar concertos e viver em países Socialistas europeus entre outros. Munir Bashir era conhecido como O Rei do Oud, o instrumento que tocava. O alaúde oriental ou ‘UD é o antepassado de todos os alaúdes e da guitarra. Desde a antiguidade, era honrado pelos povos do mediterrâneo oriental, da Mesopotâmia e da Ásia. Antes do nascimento do Islão, os árabes da “Jahiliyya dispunham de alaúdes ancestrais. A partir do séc. VI foram descritos os primeiros Barbat e ‘UD utilizados em Meca e em Medina, depois em Damasco e no seio do Califado Omeyyade. (3) O oud é um instrumento de 4 cordas em forma de pera, ou de gota. Um dia o Tiago da Neta quando estava a tocar um oud disse-me qualquer coisa como: ¶ Vês, o oud não tem trastes no braço, por isso é que tem possibilidade infinitas. Eu não sabia disso, na verdade percebo zero de instrumentos musicais e de notas, mas de facto aí percebi que sem os trastes abrem-se inúmeras notas, porque não há condicionamento na posição dos dedos no braço do instrumento. E também a improvisação é muito mais livre. Bashir era mestre na improvisação no sistema Maqam que significa lugar, localização, posição ou como o músico informa: ¶ um termo árabe que significa, literalmente, Assembleia sagrada, assembleia de um rei ou de um príncipe, ou, por extensão, um lugar sagrado (4), que é um sistema melódico árabe que permite uma variação melódica muito abrangente. Com Munir Bashir, o oud veio revelar-se um instrumento com potencial de ser tocado a solo, sem acompanhamento. Este disco foi editado pela Pathé Marconi e pela EMI, gravado em Beirute em 1972 e em Bagdad em 1973 patrocinado pelo Ministério da Informação no Iraque e apoiado pela Iraqi Airways, o que revelava uma vontade de difundir e suportar a cultura daquele país. Coisa que no nosso tempo parece praticamente impossível devido ao embróglio que se gerou naquela região como consequência das constantes interferências estrangeiras e ingerências internacionais. No lado A deste disco está registado um tema chamado Meditaions sur le Maqam Classique Chedd-’Araban e no lado B Meditations sur des Nagham-s Traditionelles D’Iraq. São duas peças lindíssimas de improvisação que tanto tem partes mais enérgicas com crescendos de tenção como partes mais meditativas, mas sente-se que há ponderação, há uma ligeireza flutuante que tornam estas peças absolutamente geniais, convidando à meditação, à viagem ao som das cordas. Por vezes há quase uma sensação performática, que faz com que tenhamos vontade de dançar, ou pelo menos transformar aquelas peças musicais em expressão corpórea, ainda que o que ressalte é a dimensão etérea deste som que é também magnetizante, absorvente, sinuoso por vezes. É curioso sentir-se a influência que esta música árabe deixou no flamenco e na música ibérica de guitarra. Munir Bashir tinha sempre presente a necessidade de partilha, de encontro entre as várias culturas e como disse tão assertivamente: ¶ Temos de trabalhar culturalmente todos juntos. (5)
publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017
1 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 53 , tradução livre do inglês.
2 Ibidem.
3 CHABRIER, Jean-Claude, ‘UD, le luth arabe, in Luth Classique, Iraq, Munir Bashir, ‘UD, collection arabesques, EMI e Pathé, 1974, tradução livre do francês.
4 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 51 , tradução livre do inglês
5 BASHIR, Munir, Interview: Munir Bashir, in EIR, 26 de Abril de 1996, p. 54 , tradução livre do inglês.
Recorri à internet para obter algumas informações genéricas, nomeadamente sobre a História do Iraque, do sistema Maqam e sobre o instrumento oud.
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