sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Edward Artemiev


 Edward Artemiev · Stalker, The Mirror, Music from Andrey Tarkovsky’s motion pictures · Electroshock Records · 2013
Este disco não é uma banda sonora, e isso é pena. É uma recolha de vários temas compostos por Edward Artemiev (1937) para os filmes de Andrey Tarkovsky, Stalker de 1979 e O espelho de 1975. No lado B está incluído também um tema chamado Dedication to Andrey Tarkovsky e não faz parte de nenhum filme, parece ser uma homenagem ao realizador. Edward Artemiev é um compositor russo nasceu na Sibéria. Compôs essencialmente musica para bandas sonoras de filmes mas também, por exemplo, uma peça para os Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980. Fez parte da equipa que desenvolveu o primeiro sintetizador na União Soviética e foi percursor da música electrónica. Esse sintetizador era o ANS, um instrumento fotoeletrónico e microtonal, criado pelo engenheiro Evgeny Murzin de 1938 a 1958. Totalmente polifónico, podia gerar até 720 sons simultâneos, o ANS basicamente transformava os desenhos criados pelo seu usuário, numa superfície própria, em sons. Este instrumento foi inclusivamente usado nas bandas sonoras dos filmes de Tarkovsky, Solaris, Stalker e O Espelho. As peças incluídas neste disco são centrais nos filmes de Tarkovsky. Apesar do compositor e do realizador não serem propriamente amigos, a sua colaboração foi prodigiosa, mesmo que Tarkovsky não acompanhasse sequer Artemiev nas sessões de gravação. Tarkovsky não era assertivo em relação ao que pretendia da música deixando o compositor num permanente limbo de incerteza até ao momento em que se finalizava o processo de incorporação da música no filme. O realizador dizia que não necessitava de todo de um compositor (1), o que de facto queria era o ouvido de um compositor e o seu forte domínio do som (2) e chegou a dizer a Artemiev: ¶ Isto não é um concerto. Isto é uma coisa singular, excepcional (3). Tarkovsky estava interessado em sons que soassem espirituais (4) e achava que o cinema era uma arte nova, recente, e que por isso não necessitava de composições contemporâneas nos filmes, achava que ao usar alguma música estruturada seria a música de Bach por exemplo. O realizador tinha a ideia de que o cinema precisava, como uma forma de arte recente, de se interiorizar no pensamento do público, na memória colectiva como uma arte intemporal, milenar como a música e a pintura, e isso só seria possível com a introdução de peças musicais como a Paixão de São Mateus ou com a presença de pinturas e desenhos de “grandes” artistas como Leonardo Da Vinci. Mas verdade é que o trabalho do compositor revelou-se parte estruturante dos filmes de Tarkovsky e conseguem ser auto-suficientes como se pode escutar neste disco, apesar de eu lamentar que o disco apenas tenha uma selecção de temas centrais, em vez de uma apresentação mais alargada do som dos filmes, que era o que me interessava ouvir também, ainda assim é um disco mais que aconselhável, parece-me essencial. É que toda a ambiência sonora, toda esta encenação musical dos sons ambientes, às vezes abafados (comboio nos carris, água que corre ou que pinga), vem distorcer a nossa percepção visual das cenas (5). Ao escutar este disco quem viu os filmes recordar-se-á das cenas em que aparecem as respectivas músicas, mas não deixará de usufruir delas per se. Apesar dessa memória imagética, as músicas compostas por Edward Artemiev reclamam para si um lugar autónomo e não são nunca meramente ilustrativas do filme. Elas conseguem inclusivamente reforçar as sensações que teríamos se víssemos o filme, como na música Exodus, presente n'O Espelho, que acompanha a imagem do desaparecimento da condensação provocada pela respiração de alguém contra um espelho, essa imagem já por si é vertiginosa, mas se ouvirmos a música sozinha, essa sensação de vórtice parece aumentada até ao limite. Ou por exemplo, o tema Train, que no filme Stalker, faz parte da cena em que as três personagens entram na Zona e estão num veículo que corre pelos carris, aqui o som dos carris é usado como ritmo que pauta a melodia, e não precisamos de ver o que está a acontecer para imaginarmos a desolação, a vastidão, a solidão daquele lugar e que os personagens sentem. Neste tema o som abafado dos carris reimprime essa sensação. Com o avanço do tempo torna-se quase opressor, marcial, mas de uma maneira suave, inebriante, culminando novamente numa sensação abismal, quase uma náusea. Também no tema Meditation não precisamos de ver a água, para a sentir. É um tema que alaga tudo, os sons de alguns instrumentos parece trepidar, ondular, e essa sensação de imersão, de fluidez, de diluição é produzida também pela encanto da flauta. Estes são temas que convidam à meditação, à contemplação, a um estado de transe, mas não é uma música agradável, é uma música que inquieta, que perturba, assim como os filmes de Tarkovsky. O trabalho de Edward Artemiev é importantíssimo e mesmo não sabendo do impacto que a sua obra para cinema teve no Ocidente, naquela altura, não podemos deixar de encontrar semelhanças e criar laços com muitos outros músicos e compositores como por exemplo David Bowie em temas como Warszawa ou Art Decade, Popol Vuh, por exemplo, nos trabalhos feitos para o realizador Werner Herzog, nalguns discos de Krafwerk, nas partes menos barrocas da banda sonora do filme A dupla vida de Verónica realizado por Kieslowsky, composta por Zbigniew Preisner, ou até na música do genérico dos X-Files. Edward Artemiev merece uma escuta atentíssima. 


publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

1 ARTEMIEV, Eward, in https://www.youtube.com/watch?v=xjVT7MlE5rY, tradução livre do inglês.
2  Ibidem.
3  Ibidem.
4  VELICHKO, Nikita, in Masters of the universe, in Wire, Fevereiro de 2017, Londres, p. 33, tradução livre do inglês

5  NEMER, François, in Duas ficções em ruínas: Fellini Satyricon e Stalker, in As Ruínas, Cinemateca Portuguesa- Museu do Cinema, Outubro de 2001, p. 95, tradução de João Pedro Bénard .
Recorri à internet para obter algumas informações genéricas sobre o ANS.

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