sábado, 27 de janeiro de 2018

Mal D'vinhos


Mal D’vinhos · Disk’é cultura · pimba’s autoroute “discos e petiscos” · 2004  Os Mal d’vinhos nasceram no princípio dos anos 2000 algures entre as Caldas da Rainha e o Bombarral. Apenas vi dois concertos (de que me recorde), um no Campo de futebol da Mata, nas Caldas da Rainha, que não tinha som, as vozes do Smith e Nadine não se ouviam, o som da bateria comia o acordeão e a guitarra, mas isso não impediu de estar cheio e de as pessoas dançarem e cantarem. O outro, acho que foi um dos últimos concertos da banda, numa discoteca no centro da cidade, ouvia-se melhor, e também estava cheio. Os Mal d’vinhos eram conhecidos por tocar em restaurantes, garagens, tascas e bailes improvisados. Infelizmente não tenho nenhum CD deles, tenho um CD-r copiado de um outro da Susana Borges (que também ele é um CD-r, mas oficial, ou seja adquirido com a capa aqui reproduzida). Os Mal d’vinhos eram compostos por vários músicos: Argénis no acordeão, Huguinho na bateria, João Buga na guitarra, José Smith na voz, Luis Carreira no Baixo, o Mané nos teclados e a Nadine Jacinto também na voz. Para mim os mal D'vinhos confundiam-se com o Focolitus, para além de alguns membros partilhares ambos os projectos musicais, toda a estética era idêntica, para além de que ambas as bandas escapavam ao facilitismo e tentavam mesclar vários géneros musicais sempre com um pendor politizado bastante marcado relacionado com uma atitude DIY e punk, até anarco-punk no caso dos Focolitus. Esta banda pretendia ser um grupo de baile de música popular ligeira. Não conseguiram, como era óbvio, nunca iriam conseguir, aliás. Não conseguiriam porque a música que praticavam estava a léguas de ser suportada pelo público desse tipo de acontecimento, ainda que hajam músicas que poderiam funcionar nesse contexto como Dizem que és ou Música estranjeira do disco Voto em branco porque não há tinto, que são músicas produzidas com algum brio que as pudesse catapultar para esse mundo e porque de facto parecem ter uma estrutura muito próxima da música de conjuntos de baile como os Diapasão ou que fazem mesmo lembrar alguns temas de um Dino Meira ou de um José Malhoa, ou até de um Quim Barreiros. Ainda assim esta música não iria ser suportada pelo público dos bailes e festas da aldeia. Como Os Mal d,vinhos diziam na música A dignidade de um artista: ¶ Mas porque eu sempre achei que poesia é para aleijar/ a minha mercadoria eles não quiseram comprar. Assim, com as letras ácidas e cheias de humor nenhuma pessoa que tenha estima ou frequente bailes de música pimba iria conseguir aceitar tamanha ironia, a não ser que estivesse completamente embriagada. De qualquer maneira hoje em dia a música das festas e baile das zonas rurais que os Mal d’vinhos ironizam (embora a música ligeira atravesse vários espectros sociais e diferentes zonas demográficas e geográficas) está extremamente influenciadas pela música que foi subindo do hemisfério Sul para aqui, falamos aqui do kizomba, do funaná, do kuduro que vieram destronar aquela música popular que se desenvolveu nos anos 80 e 90 e se cristalizou no termo Pimba. Hoje em dia a música pimba é uma espécie de multiculturalismo disfarçado e quem não perceber isso está a fantasiar com aquilo que é um baile de aldeia. Um baile de aldeia hoje já tem DJs residentes, uma tenda de música electrónica até de manhã, esquemas de dança, zumba, tanto se tocam as músicas dos Xutos e Pontapés como do Nelson Freitas, as bandas apresentam um espectáculo verdadeiramente multimédia com projecções de video e outras engenhocas tecnológicas de ponta, ou seja as festas da aldeia são muito mais heterogénias na fauna e nos espéctaculos do que há 15 anos, mas isso não significa, infelizmente, que tenham subido o patamar da qualidade. Voltemos aos Mal d’vinhos, este disco, Disk´é Kultura mistura muito bem a energia e a sonoridade do punk, e alguns elementos da tal música ligeira portuguesa. Mas essa mistura é feita com esmero, com inteligência, não vive da piada fácil, da brejeirice ou da misoginia irónica. Esta estratégia de tentativa de penetração nos mecanismos da industria da música popular ligeira, mimetizando em certos aspectos as suas estruturas musicais mas com o intuito de fazer uma crítica mordaz e sarcástica dessa própria indústria ou seja, de a corroer por dentro, é uma coisa que me fascina, ainda que na verdade este projecto não tenha conseguido penetrar verdadeiramente nessa esfera capitalista. As músicas deste disco falam sobre a tacanhez, a avareza e os interesses políticos, como em Ambiçum Pulítica ou Baile da Bófia, a decadência da indústria musical que só produz alienação como em A dignidade de um artista, a celebração da estética Tunnig como exponencial de um machismo (frustrado). Preste-se atenção, por exemplo, à letra da música Tunning, Tunning: ¶ Sou um tipo popular/ Sempre a abrir, civilizado / Não percebo quando ela diz / que sou um bocado frustrado (…) Seguia pela estrada fora com os alerons ao vento/ Para por estas luzes, vendi meu querido jumento/ O meu mega bote chamado Viagra/ extensão do meu sexo que já não consagra (…) Conheço todos os bordeis, de qualquer Nacional/ O que é que querias bacano? É assim que se faz em Portugal. No conteúdo das letras percebe-se que os Mal d’vinhos nunca poderiam resultar no contexto dos bailes de música ligeira, ainda assim conseguiram (num contexto de um público alternativo) fazer potenciais megasucessos de Verão, com letras e melodias catchy que surpreendem pela sua incrível capacidade de se trautearem e de se colarem ao ouvido. Experimentem ouvir este disco e reparem se depois não vão ficar a cantarolar os refrões. Para além da música outra coisa que sempre me fascinou foi a imagem gráfica associada a este projecto, desde os cartazes às capas dos discos. Parece-me que quem os produzia eram o José Smith e a Nadine Jacinto Rodrigues. Extremamente corrosivas, as colagens e instalações de Nadine, de que me lembro, recuperavam a estratégia Dadaísta e encontramos ligações com as colagens de Hannah Hoch e também com a instalação de ocupação espacial de Kurt Schwitters, a Merzbau. Smith usava a ilustração e colagens que davam uma estética punk cómica ao material gráfico da banda, aliás podemos ver o trabalhos dele nos cartazes para a ATR, no Jornal Mapa ou nas várias BDs que tem feito para ChilicomCarne, ou auto-editadas. Esta obsessão pelo preenchimento do espaço com uma estética punk, funcionavam particularmente bem com a música, que se apresenta orgânica, cómica, popular, corrosiva/corroída, mas sempre, sempre apresentada de maneira inteligente, sem ceder à parvoíce bacoca e a mensagens vazias. Obrigatório!

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

Recorri à internet para informações genéricas sobre os membros da banda e para ver os vídeos de concertos no Youtube.

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