Sonny Sharrock · Black Woman · Vortex · 1969 Encontrei o Sonny Sharrock (1940-1994) por acaso, estava a ler um texto na Wire
de um tal Tony Rettman em que ia descrevendo a sua descoberta da cena
hard-core e punk norte americana e depois a descoberta do free-jazz, e
equiparava a energia do hard-core com um tal Sonny Sharrock. Fui
procurar, os discos não existiam à venda e na net eram caríssimos, fiz
um download, Black Woman, foi o disco que saquei. Não consegui
ouvir todas as músicas imediatamente, algumas demoraram a inscrever-se.
Não são todas avassaladoras no início e isso custou-me, porque não
estava a encontrar a fúria do hard-core facilmente. Mas com pouco
esforço elas entranharam-se, e de que maneira. Sonny Sharrock é um
guitarrista com uma aproximação ao instrumento muito característica, já
tinha ouvido a sua guitarra, mas não sabia onde. Afinal tinha sido no
disco Tauhid de Pharoa Sanders, se o escutarmos com atenção vamos encontrar aí algumas semelhanças com a guitarra de Black Woman.
Este é um álbum demolidor, orgasmicamente demolidor. Aqui guitarra de
Sonny Sharrock e todo o conjunto de instrumentos é de facto muito forte,
mas para além disso a energia que Linda Sharrock (1947), a então mulher
de Sonny, emprega neste disco é de uma ferocidade transcendental, de
uma entrega corpórea incrível. É a voz elevada a instrumento, que o é
sempre, mas aqui está num nível que se afasta do acompanhamento, é
verdadeiramente avassaladora. Em todas as 4 músicas deste álbum em que
aparece as voz de Linda, apenas Bialero, contém palavras, nas
restantes a voz é apenas som, contribuindo, na minha opinião para que a
voz seja realmente elevada a instrumento, porque não ilustra a música
com palavras, com ideias e imagens, é puramente sonora. E mais que a
voz, sentimos a presença de um corpo no seu todo, é todo um corpo de uma
mulher que canta, que se torna quase insuportável, a tenção que há no
grito é de raiva, de catarse mas também é sexual, e isso é tão poderoso,
tão forte que quase sentimos que não devíamos estar a ouvir esta voz.
Na música Portrait of Linda in Three Colours, All Black
temos o expoente máximo do que se descreve atrás no texto, é uma música
com um ritmo quase dançável, à medida que vai evoluindo parece que
estamos a presenciar um ritual de ascese, os instrumentos entram
formando uma malha instrumental densa, levando tudo à frente, depois a
voz de Linda impõe-se e essa energia é exponencialmente catártica. Peanut
é uma música abismal, a voz de Linda parece que vai caindo num vórtice
juntamente com os restantes instrumentos, em cascata. Este é um disco de
free-jazz furioso, com uma energia visceral, mas a música Bialero
é de uma doçura cândida, luminosa, de uma beleza cristalina que
contrapõe todo o caos em que aparentemente está mergulhado o resto do
disco. Eu não sei se a ideia de gravar um disco chamado Black Woman
foi de Sonny ou de Linda, de facto o final dos anos 60 do século
passado foram anos de grandes lutas dos Black Panthers contra o sistema
segregacionista dos EUA, e este álbum julgo que vem de encontro a essa
luta, mas mais que ser um álbum com músicos afro-americanos, é um disco
que se emancipa e coloca a mulher negra no centro da questão, e isso é
admirável. Se este é o grito da mulher negra, é um grito extremo, livre e
poderoso! Este é um álbum que apesar de todo o noise, de toda a
amalgama instrumental é um álbum espiritual, emocional que recupera
muita da tradição do blues, dos ritmos africanos, e na minha opinião é
um encontro muito feliz, este.
publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017
Recorri, obviamente à internet, para sacar o disco, e para me informar melhor sobre ele.
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