quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Sonny Sharrock

Sonny Sharrock · Black Woman · Vortex · 1969 Encontrei o Sonny Sharrock (1940-1994) por acaso, estava a ler um texto na Wire de um tal Tony Rettman em que ia descrevendo a sua descoberta da cena hard-core e punk norte americana e depois a descoberta do free-jazz, e equiparava a energia do hard-core com um tal Sonny Sharrock. Fui procurar, os discos não existiam à venda e na net eram caríssimos, fiz um download, Black Woman, foi o disco que saquei. Não consegui ouvir todas as músicas imediatamente, algumas demoraram a inscrever-se. Não são todas avassaladoras no início e isso custou-me, porque não estava a encontrar a fúria do hard-core facilmente. Mas com pouco esforço elas entranharam-se, e de que maneira. Sonny Sharrock é um guitarrista com uma aproximação ao instrumento muito característica, já tinha ouvido a sua guitarra, mas não sabia onde. Afinal tinha sido no disco Tauhid de Pharoa Sanders, se o escutarmos com atenção vamos encontrar aí algumas semelhanças com a guitarra de Black Woman. Este é um álbum demolidor, orgasmicamente demolidor. Aqui guitarra de Sonny Sharrock e todo o conjunto de instrumentos é de facto muito forte, mas para além disso a energia que Linda Sharrock (1947), a então mulher de Sonny, emprega neste disco é de uma ferocidade transcendental, de uma entrega corpórea incrível. É a voz elevada a instrumento, que o é sempre, mas aqui está num nível que se afasta do acompanhamento, é verdadeiramente avassaladora. Em todas as 4 músicas deste álbum em que aparece as voz de Linda, apenas Bialero, contém palavras, nas restantes a voz é apenas som, contribuindo, na minha opinião para que a voz seja realmente elevada a instrumento, porque não ilustra a música com palavras, com ideias e imagens, é puramente sonora. E mais que a voz, sentimos a presença de um corpo no seu todo, é todo um corpo de uma mulher que canta, que se torna quase insuportável, a tenção que há no grito é de raiva, de catarse mas também é sexual, e isso é tão poderoso, tão forte que quase sentimos que não devíamos estar a ouvir esta voz. Na música Portrait of Linda in Three Colours, All Black temos o expoente máximo do que se descreve atrás no texto, é uma música com um ritmo quase dançável, à medida que vai evoluindo parece que estamos a presenciar um ritual de ascese, os instrumentos entram formando uma malha instrumental densa, levando tudo à frente, depois a voz de Linda impõe-se e essa energia é exponencialmente catártica. Peanut é uma música abismal, a voz de Linda parece que vai caindo num vórtice juntamente com os restantes instrumentos, em cascata. Este é um disco de free-jazz furioso, com uma energia visceral, mas a música Bialero é de uma doçura cândida, luminosa, de uma beleza cristalina que contrapõe todo o caos em que aparentemente está mergulhado o resto do disco. Eu não sei se a ideia de gravar um disco chamado Black Woman foi de Sonny ou de Linda, de facto o final dos anos 60 do século passado foram anos de grandes lutas dos Black Panthers contra o sistema segregacionista dos EUA, e este álbum julgo que vem de encontro a essa luta, mas mais que ser um álbum com músicos afro-americanos, é um disco que se emancipa e coloca a mulher negra no centro da questão, e isso é admirável. Se este é o grito da mulher negra, é um grito extremo, livre e poderoso! Este é um álbum que apesar de todo o noise, de toda a amalgama instrumental é um álbum espiritual, emocional que recupera muita da tradição do blues, dos ritmos africanos, e na minha opinião é um encontro muito feliz, este.

publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Março de 2017

Recorri, obviamente à internet, para sacar o disco, e para me informar melhor sobre ele.

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