sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

The Residents: antropofagia nos Estados Unidos em 76

Ao ouvir o disco The Third Reich’N Roll dos The Residents, recordei-me do Manifesto Antropofágico de Oswald, dos rituais antropofágicos e da ideia de antropofagia (do grego anthropos, homem e phagein, comer) que é a ingestão de carne humana em certas tribos, não por necessidades de nutrição, antes para absorção de poderes e atributos daquele que era ingerido, na maioria dos casos este acto era um ritual mágico para prestar homenagem a alguém e adquirir as suas características. O Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia em 1928, escrito por Oswald de Andrade, alude a uma ideia de ingestão da cultura europeia que foi e é estabelecida como progressista, iluminada e iluminante e que foi imposta às populações indígenas do Brasil, que deveria ser regurgitada num outro entendimento da identidade brasileira enquanto cultura construída a partir da sua real entidade pré-colonial em relação com a cultura ocidental industrializada. Tal como o índio Tupi, a cultura brasileira deveria ingerir a europeia resultando dessa digestão uma espécie de absorção das características positivas da Europa colonizadora pelo corpo cultural brasileiro. O índio Tupi comeria o seu inimigo para ficar mais forte. O que defendia a utopia antropofágica modernista era que dessa ingestão resultaria uma verdadeira emancipação da cultura brasileira, afastada da burguesa e patriarcal europeização ¶ Esta corrente modernista brasileira defendia que o Brasil deveria iniciar uma revolução no entendimento da sua relação cultural (e política) com o peso do violento passado de um território colonizado por Portugal e pela Europa enquanto conjunto de estados imperialistas, que enraizaram à força a sua cultura ao longo dos séculos como a única e universal, asfixiando e demonizando as estruturas culturais, politicas e sociais das populações donas desses territórios ¶ Este disco dos The Residents fez-me pensar nessa ideia de antropofagia ¶ Pode-se pensar nos The Residents como os antropófagos dos EUA, neste álbum ingerem cerca de trinta músicas do top 40 americano dos anos 60 e regurgitam duas suítes, Swastikas On Parade e Hitler Was a Vegetarian.
O que os The Residents propunham em 1976, com este disco lançado pela Ralph Records era uma ideia antropofágica de intervencionar o Top 40 dos E.U.A e o resultado foi este álbum. (Double shot) Of my baby’s love dos americanos The Swinging Medallions, é uma música solarengamente adolescente. Woke up this morning, my head was so bad/ The worst hangover that I ever had, no disco dos The Residents é cantado por um coro ressacado, o enjoo é tão enfatizado que a sensação é a de uma grande vertigem, uma insuportável dor de cabeça, um arrastado sofrimento. A náusea e decadência, são aliás sentimentos que nos vão acompanhando ao longo de todo o disco. Na versão de Light my fire dos The Doors há a repetição do refrão dessa canção por uma voz masculina completamente decrépita, com um acompanhamento musical característico da imagética relacionada aos circos decadentes. Qualquer sexualidade que pudesse emanar da voz e do corpo de Jim Morrison é aqui aniquilada, temos antes um homem caduco que num tom superior ordena Come on baby light my fire, come on baby light my fire, mas que na verdade o que diz, soa mais a uma imploração vomitada e agressiva, de quem, numa última tentativa de provar as suas faculdades sexuais, o que acaba por nos mostrar é a sua humilhante situação de perda da sexualidade. Faz-nos imaginar um corpo arruinado e rejeitado. Se havia sensualidade nessa música os The Residents dão-nos bizarria e fealdade. Também a música, In a Gadda da Vida dos Iron Butterfly, uma banda hard-rock psicadélica, é transformada em música punk, e o que o punk tem de rude e áspero está nesta versão, a voz tem o atrito, a bateria tem a velocidade e precisão, quase roça o hard-core, o crust, ou alguns desvios musicalmente ainda mais agressivos da música punk. O que fica é de novo o enjoo, a decrepitude que percorre as duas músicas que compõem o álbum. A ligar todos os trechos de músicas está um emaranhado de tecidos sonoros, através do qual se ligam todas as versões das músicas que foram alvo de apropriação por parte dos The Residents, contribuindo esses interlúdios para que o disco soe familiar e totalmente alien ao mesmo tempo (1) . Esses arranjos, sejam eles samples de metralhadoras, acidentes de automóvel, improvisações jazz caóticas que podem fazer lembrar Sun Ra ou o uso de instrumentos musicais de baixa qualidade, são como delicadas membranas que unem as músicas intervencionadas (destruídas) pelos The Residents. Mesmo passados cerca de 35 anos, algumas dessas intervenções podem fazer-nos lembrar algumas práticas na música exploratória contemporânea como são, por exemplo os Hype Williams, que para além de recorrerem a samples de sons das mais variadas situações quotidianas e da cultura pop, como jogos de consolas fazem, também eles, uma apropriação de outras músicas, distorcendo-as e decompondo-as para a criação de novas, e também nos seus álbuns (principalmente nos primeiros) há um arrastamento, quase uma suspensão do tempo que vai decorrendo lentamente, mas em vez da cacofonia agressiva do The Third Reich’N Roll ainda que se sinta um arrastamento, nos Hype Williams há uma óbvia ambiência fumegante, quase adocicada onde são reciclados os anos 80, 90 e o advento da cultura pop a uma escala global associada a essas décadas. Parece-me que os The Residents abriram as portas a novas sonoridades, recorrendo ao uso da música popular parodiando-a, destruindo-a regurgitando uma nova maneira de pensar a música fora dos círculos ligados à teorização musical. Sempre houve nos The Residents uma vontade de fazer música sobre música (2) , e com essa metalinguagem pavimentaram-se novos caminhos em direcção a um entendimento contemporâneo da cultura, há espaço para a auto-referencialidade, e também para uma desejável auto-crítica. Mas, e é aqui que julgo que os The Residents são importantes, apesar de lidarem com assuntos sobre a ideia de música como algo que pode e deve questionar os seus limites, eles fizeram isso com a música proveniente da cultura popular e com humor, desenvolvendo as suas investigações musicais usando os modelos que adoptaram dessa mesma cultura de massas, e a sua criação foi mostrada não apenas dentro dos círculos intelectualizados, mas nos circuitos da cultura popular, replicando essas estratégias de marketing e divulgação, mas por causa da sua criatividade, espírito vanguardista de não alinhamento e principalmente, por causa da sua música difícil, diferenciaram-se dos ícones Pop comuns. São exemplos da replicação das estruturas basilares da Pop os concertos públicos, os discos, a criação de uma identidade/marca que os promovia e sobretudo a invenção de quatro personagens, à imagem de várias bandas da cultura popular, como os Beatles ou os Rolling Stones (sempre na mira dos The Residents, entre outros) que os admiradores podem idolatrar, sendo que os The Residents trocaram um corpo por um olho gigante na cabeça e por um smoking, imagem que foi sendo alterada ao longo do tempo, e, julgo eu, foi esta ausência de um corpo visível e reconhecível, o anonimato dos artistas que permitiu que os The Residents pudessem continuar ainda hoje com o seu trabalho, porque de facto qualquer pessoa pode tomar o lugar do anterior nesta banda, e nenhum posto é irrevogável, sendo assim o projecto (colectivo?) pode continuar. Este disco, apresenta-se também como uma clara crítica à subversão da revolta que se profetizou com o aparecimento do rock’n roll, o sistema absorveu a juventude e integrou-a, juntamente com as suas manifestações culturais, num sistema capitalista pasmacento e confortável, encabeçado por algumas solarengas bandas de surf e garage-rock. 



Podemos ver na capa deste disco o cartoon Dick Clark vestido com uma farda nazi e jovens casais com a cara de Adolf Hitler a dançar em seu redor. Uma imagem cómica do controlo das massas pela música convencionada e dentro das regras. Uma ilustração maquiavélica mas bem humorada do totalitarismo cultural. Se ouvíssemos de seguida as músicas originais que foram torcidadas pelos The Residents neste disco, provavelmente teríamos uma festa com música dos anos 60 divertida, que ainda hoje nos diverte, mas o que eles fizeram foi pegar nessa ingénua vontade de aparentemente viver sem preocupações, fomentada nos EUA (apesar da guerra do Vietnam e dos graves conflitos sociais internos, como a segregação racial e as diferenças abismais entre classes por exemplo) e transformar tudo isso num avassalador caos musical obscuro e indisposto. Exactamente por todas estas questões ligadas à crítica da cultura de massas e aos aspectos socio-políticos inerentes, juntando-lhes a complexidade rítmica e de texturas sonoras faz dos The Residents e deste disco, The Third Reich’N Roll, uma obra que merece ser ouvida e compreendida com toda a atenção e seriedade, apesar de toda a carga cómica e satírica que sempre foi constante neste projecto.



publicado originalmente na publicação O Príncipio em Novembro de 2013

1 POUNCEY, Edwin, The Primer: The Residents in The Wire, nº 204, Londres, Fevereiro 2001, p. 45 
2 http://www.residents.com/historical4/classic/page11/page11.php





segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Matana Roberts: As imagens e a música

Se me perguntarem, em relação ao trabalho de Matana Roberts, se primeiro vieram as imagens ou as músicas, eu respondo que primeiro veio, e ficou instantaneamente, a música e só depois as imagens. ¶ Já tinha ouvido falar de Matana Roberts, tinha tocado na ZDB em 2011. Mas não vi o concerto, nem percebi muito bem do que se tratava. Em 2013, reparei na capa da revista Wire, que tinha um retrato da artista, e fiquei intrigado com a imagem: uma rapariga afro-americana com dreadlocks que caíam sobre um casaco militar norte-americano e que deixavam, a descoberto, as letras MY da palavra ARMY. Pensei, automaticamente, no possível anacronismo dos símbolos que via na fotografia (afro-americana vs. uniforme do exército, símbolo militar do imperialismo Estado-uniense), e imediatamente abri a revista e comecei a ler. Mais tarde, pedi a revista emprestada a Sérgio Hydalgo e, no comboio a caminho de casa, li com mais atenção todo o artigo. Fiquei interessado e procurei o disco que tinha saído naquela altura, Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile que ouvi incessantemente.


Este foi, provavelmente, o primeiro disco de jazz que ouvi a sério. A minha escola musical foi outra, a do rock e dos seus desvios mais ou menos previsíveis. Naquela altura, estava sedento de encontrar música que falasse de questões relacionadas com a problemática da discriminação racial, feita por quem a sente de maneira directa. Música que soasse a isso (para além da música tradicional e popular: folk music de outras latitudes que volta e meia escuto e colecciono). ¶ O rock que ouvia não me permitia encontrar isso. Algo me dizia que poderia encontrar essa energia no jazz. Foi isso que Matana Roberts me proporcionou: a aproximação a uma linguagem que eu desconhecia (e continuo a desconhecer na verdade). Daí para a frente, fui escavando, encontrando aqui e ali, quando me era possível, outras luzes com as quais vou sentindo empatia e que me acompanham musical e eticamente. ¶ Mas o que é que uma pessoa do sexo masculino, caucasiana, de 29 anos, nascida numa zona rural de um país no cú da Europa pode procurar na música jazz? Com que legitimidade pode ela querer meter-se nessa trincheira? O que é que tem a ver com as reivindicações propostas pela música jazz enquanto música potencialmente politizada? Tudo. ¶  Tem tudo a ver, quanto tem a ver com outras reivindicações relacionadas com problemáticas como as de classe, sexualidade, sexismo, xenofobia, homofobia, etc… (que se cruzam entre si). Toda a música pode ser um canal para falar e tentar compreender questões discriminatórias, de todos os tipos. O indivíduo (aparentemente) privilegiado tem o direito (até tem é o dever!) de ouvir esta música, porque ela, ao falar de descriminação racial, tem a capacidade de também espelhar todos os tipos de descriminação e todos os tipos de opressão. ¶ Não sou afro-descendente (embora sejamos todos), nem sou mulher. Muito do que a música de Matana Roberts convoca é a história da condição dos afro-descendentes e questões ligadas ao género e à objectificação feminina. Toda a raiva, toda a consternação que possa ser veiculada para e pela sua música, eu não a consigo sentir directamente porque não sou alvo directo dessa discriminação. Mas sou alvo de outras e sou totalmente solidário com as suas causas, pois sinto que a máquina que oprime o Outro é a mesma que oprime a mim. Por outras razões, numa outra escala, de maneira diferente, claro, mas parece que é a mesma. Não vivo numa redoma ou numa torre de marfim e não me posso demitir de observar e constatar o que o Outro sente porque faço parte do mesmo meio que o Outro, consigo partilhar a sua revolta. ¶ A minha intenção não é ser paternalista, é apenas clarificar que não podemos sentir igualmente porque não somos iguais. O que não significa que nos sejam vedadas as mesmas oportunidades, os mesmo direitos. Não significa que não possamos lutar juntos, que não nos possamos encontrar no mesmo esforço. ¶ De facto, o tema da escravatura é um tema que reverbera até hoje, não só nos Estados Unidos, mas também um pouco por todo o mundo colonizado/colonizador. Todos nós conhecemos a maneira como a Europa colonizadora estropiou e espoliou os Novos Mundos, como tão bem observou Tuiavii: ¶ Por mim não me espantaria muito que o Papalagui nos tivesse trazido o Evangelho à laia de mercadoria, em troca dos nossos frutos e da mais bela e maior parte da nossa terra, da qual se apropriou. (1) ¶ As consequências são visíveis e só não as vê quem não quer, só as não admite quem não quer. Todos devemos ter noção de que vivemos numa sociedade segregacionista, mesmo quando não se autodenomina assim. Basta olhar para quem ocupa determinados postos de trabalho, para a maneira como as cidades são organizadas e para quais áreas são destinadas cada uma das camadas sociais. Tudo parece estar organizado e estratificado, como se vivêssemos numa sociedade oficialmente segregacionista. Mesmo que, oficialmente, a escravatura tenha sido abolida em 1863 nos Estados Unidos; o Apartheid, na África do Sul, terminou apenas em 1990; e as antigas colónias portuguesas tiveram que sangrar numa guerra para obterem a sua independência até 1974, por exemplo. ¶ Ainda que hoje tenha sido eleito um presidente afro-americano nos EUA, os traumas da escravatura ainda ecoam na nossa sociedade, e Matana Roberts fala sobre isso: ¶ O facto de que há uma mulher na Casa Branca, que é descendente de escravos do Sul dos Estados Unidos deixa-me mesmo perplexa. (2) ¶ Sobre esta questão, Matana Roberts aprofunda mais e diz: a eleição de Obama foi um enorme passo para a América, e um enorme passo para a inclusão da história Afro-Americana nesse processo. Mas agora levanta-se a questão de onde é que os artistas Afro-Americanos devem pôr esse foco criativo que vem de trás… Alguns assuntos com que os nossos antepassados lidaram estão ainda, obviamente, infelizmente presentes, mas [agora existe aí] uma profundidade que pode ir além das ideias referentes apenas à comunidade Afro-Americana. Isto está a abrir um outro ponto de vista para que possamos usar a nossa história como uma forma de mostrar a outras pessoas que lidam com uma reciclagem do que nós talvez tivemos de lidar e, em certo sentido, [estão] a lidar também. Estou a falar principalmente de imigração, direitos LGBT e tráfico humano. Estes são exemplos de actos de registo histórico meramente a repetirem-se a si próprios. (3) ¶ De facto a eleição de Obama para presidente dos Estados Unidos foi um grande passo para a inclusão da comunidade Afro-Americana, no entendimento da história dos EUA, mas isso não veio resolver os problemas segregacionistas dessa sociedade, que são problemas de uma profundidade e complexidade tal que não seria um só homem a resolve-los. ¶ Esses problemas agudizam-se à medida que se agudiza a crise do capitalismo, prova disso são os protestos por parte das comunidades Afro-Americanas aquando dos assassínios cometidos pela polícia de jovens negros nos últimos meses (protestos em que a própria artista esteve envolvida). A violência policial empregada nesses casos faz lembrar a dos anos 60 e estas lutas parecem tão pertinentes como as dos Black Panthers nessas décadas. ¶ A eleição de Obama é um marco importante na história dos EUA e isso é um passo gigante que tende a forçar a inclusão oficial da comunidade Afro-Americana nesse processo de transformação histórica (indiscutivelmente que é), mas a verdade é que a sociedade norte-americana não acompanhou esse passo, e as crises sociais internas e a destabilização internacional provocada pelos interesses económicos dos EUA parecem-me ser o reflexo disso. ¶ De facto, admiro imenso a clarividência com que Matana Robets avalia a situação do seu país, que se reflecte também no seu interesse e na a investigação sobre sua genealogia familiar, que conseguiu estruturar com o auxílio dos recibos de venda dos seus antepassados em leilões. Isso é perturbador e diz muito sobre os pilares deste país, e como as coisas puderam ser montadas numa maneira muito particular que deixou tantos de fora. (4) ¶ Um facto interessante, enunciado pela artista no texto a cima, é a capacidade que a arte engajada nas questões da herança Afro-Americana tem de conseguir apontar a mira desse foco criativo herdado para outras direcções – por um lado, chega ao Outro falando da sua herança e, por outro, fala de questões relacionadas com a herança do Outro falando da sua. ¶ Quando se nomeiam dois tipos de descriminação, como racismo e o sexismo, presentes no trabalho de Matana Roberts, não se pode simplesmente reduzi-lo a isso, porque a sua prática não se fecha nestas duas matérias. O interesse do seu trabalho adensa-se quanto mais todos estes tipos de descriminação se entrecruzam, se fundem, e ao falar da escravatura negra do séc. XVIII, Matana Roberts fala também noutros tipos de escravatura no séc. XXI, como a artista refere na entrevista à revista Wire: ¶ Podes usar estas estórias e estas narrativas como uma forma de expressares um passado mas também um presente. E, o que é realmente interessante, o que eu espero conseguir é transformar o trabalho em algo mais, é usá-lo como uma plataforma [para abordar] estas outras formas de escravatura que prevalecem. O tráfico sexual, por exemplo, só em Nova York, é um problema enorme. Os problemas com a imigração estão realmente a transformar os imigrantes em servos indigentes ou, em alguns casos, mesmo em escravos. Então, estou a tentar encontrar novas maneiras de falar sobre estas coisas, de trazer mais atenção para estas outras coisas porque eu sou descendente dessa indústria. É preocupante, é fascinante e é uma história que me dá um certo sentido de compasso e direcção. (5) ¶ Matana fala de Nova York, mas podemos enumerar casos idênticos em Portugal, como a escravatura laboral de imigrantes romenos, moldavos, nepaleses, etc, na apanha da azeitona. Ou, por exemplo, segundo os dados da Observatório do Tráfico de Seres Humanos em Portugal, em 2014, foram identificados cerca de 182 presumíveis vítimas de tráfico humano, das quais 86 eram vítimas de exploração sexual (6), e estes são os casos identificados, pois todos sabemos que o problema é muito mais profundo. ¶ O trabalho de Matana Roberts reveste-se então dessa possibilidade de ser o reflexo do Outro, ou, convocando aqui Albert Ayler para ilustrar esta ideia falando sobre jazz: ¶ A música negra não diz respeito a brancos ou a negros porque é do nosso povo, do universo, não tem donos… (7) ¶ Apesar dessa característica de alteridade, o trabalho de Matana parte indubitavelmente da sua herança cultural, política, musical, familiar e emocional. No disco Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile temos acesso a leituras de Matana a partir de entrevistas feitas à sua avó, que contam relatos da vida quotidiana inserida numa comunidade do Mississippi, estado do Sul dos EUA: ¶ (…) frio, velas, algodão, Camden, Mississippi / o mais velho era o Willie May, eu sou a mais nova, abençoada Emma, só o mais velho e a mais nova ainda estão vivos, todos os outros estão mortos / a mãe e o pai eram rigorosos, não trabalhavam ao Domingo, era dia santo / às vezes sinto-me como uma criança sem mãe / Se vou morrer quando estiver acordada, Peço ao Senhor para levar a minha alma / o Willie May e eu saltávamos à corda e jogávamos à bola e fazíamos vestidos com folhas, bolos de lama e tartes de lama / (…) / e jogávamos ao berlinde / há certas coisas que eu não te posso dizer, querida / melancias, pêssegos e ameixas e cerejas e damascos / melancias, pêssegos, ameixas, cerejas, damascos / Pêras no pomar / (…) mas às vezes não chovia e nós usávamos a água da chuva para tudo, e nessa altura tínhamos um poço, nessa altura tínhamos uma bomba de água / Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome / não gostavam de pessoas negras no hospital / sabes, podias usar um quarto / mas nenhuma enfermeira te ia atender / (…) / há certas coisas que eu não te posso dizer, querida (…). (8) ¶ Na mesma música há também um trecho do discurso de Fannie Lou Hamme, feito em 1968 na Convenção Nacional Democrática, que é bastante ilustrativo da brutalidade policial sobre os indivíduos afro-americanos: ¶ Fui colocada numa cela com uma jovem mulher chamada Miss Ivesta Simpson. Depois de ser colocada na cela comecei a ouvir sons de pancadas e gritos. Eu podia ouvir os sons de pancadas e gritos horríveis. E eu podia ouvir alguém dizer: “Podes dizer ’Sim, senhor’, preta? Podes dizer ‘Sim, senhor ‘?” E eles diziam outros nomes horríveis. Ela dizia: “Sim, eu posso dizer ‘Sim, senhor’.”Então, vá, diz isso.” Ela disse: “Eu não o conheço bem o suficiente.” E eles bateram-lhe… (9) ¶ Esta prática de mistura de várias referências pessoais e políticas, populares e eruditas, tanto na música como nas letras, demonstra bem a horizontalidade com que a artista trabalha as várias referências que aparentemente podem ser divergentes ou incompatíveis. Então, nestes discos, aparecem discursos de Malcolm X misturados com o canto das aves e falas de Gertrude, uma sem-abrigo de Jackson, a voz de um tenor com canções populares, infantis e free-jazz. A música de Matana Roberts propõe um encontro de várias práticas de forma igualitária, e a própria artista define o seu processo de trabalho como panoramic sound quilting (10), que, traduzindo (muito) livremente, seria algo como uma colcha de som panorâmica(?). ¶ Tradição familiar recuperada por Matana, o seu trabalho é construído como uma colcha de retalhos, como se cada música, cada imagem fosse a conjugação de vários fragmentos, retalhos que a artista vai guardando, recuperando ou construindo, e que depois, juntos, são uma coisa maior, mais complexa, mais forte, mais robusta também, mas alargada, aberta, daí panorâmica. São um documento histórico vivo (11). ¶ Aqui poderíamos também recuperar a ideia do respigador. A artista constrói o seu trabalho como uma respigadora de sons e imagens, um pouco como Agnés Varda fez com os pequenos vídeos que resultaram no belíssimo filme, A respigadora e os respigadores. Nos três capítulos do ciclo Coin Coin, é notável uma composição a partir de vários trechos, fragmentos. No primeiro capítulo, Gens de Couleur Libres, encontramos uma mistura sonora de Art Ensemble of Chicago com (talvez improváveis) Swans (em discos como Soundtracks for the blind, devido aos drones e crescendos de tensão presentes em algumas músicas do disco de Matana) tudo mesclado com gritos e choros, simulando (talvez mesmo sentindo) a dor dos escravos negros do séc. XVIII. ¶ No segundo capítulo, Mississippi Moonchile, Matana reúne novamente um conjunto de músicos, mas cria um disco mais luminoso, cheio de dor também, mas com um tom esperançoso. Há momentos de luz, o saxofone também embala, não fere só, e depois há a presença de um tenor que canta numa simbiose perfeita, que eu nunca tinha imaginado possível entre o jazz, a música experimental e a música dita lírica. ¶ No último capítulo editado, River Run Thee, Matana está sozinha. Esse é, quanto a mim, o mais obscuro de todos os três. Há presença de instrumentos electrónicos, samples de ambientes exteriores e conversas, depoimentos políticos, gravações de melodias infantis. Mas há sempre um ruído quase claustrofóbico que oprime, podendo sentir-se de facto um mau estar que eu interpreto como próprio da conjuntura política e social. Apesar da artista referir que tem esperança no futuro, este último capítulo, o terceiro (no total serão 12), a meu ver, é o mais desencantado, o mais sombrio, triste até. 





 Matana tece de facto os seus discos como se fossem uma manta de retalhos, musical e visualmente. Confessa coleccionadora de imagens antigas, Matana Rorberts, à semelhança das músicas, vai construindo as imagens das capas dos seus discos e os posters que os acompanham, colando e conjugando várias fotografias, acrescentando pinturas, decalques, impressões. Vai desenhando constelações possíveis, como podemos ver mais claramente no poster que acompanha o álbum Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres: círculos com pautas musicais, que não são paralelas, cruzam-se. Desses círculos, radiam ondas que ligam a outros círculos, a outras imagens. ¶ Flutuando aqui e ali números, os círculos sugestionam datações históricas: 1933, Hitler torna-se chanceler alemão; 1954, o Supremo Tribunal dos EUA declara que a segregação racial nas escolas é inconstitucional; 1910, implantação da República Portuguesa; 1945, fim da Segunda Guerra Mundial; 1873, abolição da escravatura em Porto Rico; etc. No fundo, parece-me que estas cronologias podem ser adaptadas a diferentes eventos, colectivos ou individuais, universais ou regionais, como se a História pudesse ser uma construção individual, ou que, estando num outro ponto geográfico, geracional ou cultural, pode ser lida de outra maneira. Depende de quem olha para ela. 

  
Na capa deste disco, vemos a cara de uma jovem afro-descendente. O olhar cabisbaixo, mas penetrante, faz lembrar os rostos das ilustrações de Emory Douglas para o jornal do partido Black Panthers. Se as pessoas desenhadas por Douglas têm o rosto cabisbaixo não é por subserviência, parece-me que têm mais a ver com uma raiva contida que está prestes a rebentar. Não fosse a capa do disco cortar a jovem pelo peito, poderíamos imaginar que também ela tem armas na mão, uma vassoura, uma catana, uma lança. De qualquer maneira, não me parece que Matana Roberts esteja a apelar à luta violenta, mas também ela apela à luta, a um compromisso, que seja pessoal e/ou íntimo, é um compromisso: ao comentar a música Libation For Mr Brown: Bid Em In, a artista fala dessa espécie de obrigação histórica, esse compromisso ético e impossível de afastar para com os seus antepassados: ¶ (…) a minha vida é muito boa, não teria possibilidade de fazer o que faço, e o privilégio e os recursos que tenho para fazer arte, se não fossem as licitações dessas pessoas. Posiciono-me do lado de tantas pessoas que nunca tiveram a possibilidade de se expressar a si próprias. Se estas coisas não tivessem acontecido, o que é que me teria acontecido a mim? Onde estaria eu? (12) ¶ Ao olhar para a arte de Matana Roberts, podemos fazer inúmeras ligações a outros artistas, como por exemplo Kara Walker. Embora formalmente os seus trabalho não sejam próximos, Kara Wlaker também trabalha sobre a herança da cultura afro-americana, convocando essa iconografia, presente em contos populares, em músicas, em gravuras, para expor a violência e a desumanização de que foram alvo as comunidades afro-descendentes nos Estados Unidos da América ao longo do período Antebellum (antes da guerra) e da Guerra Civil (e não só). 
Essa desumanização pode encontrar-se nas suas silhuetas, pelas quais as mulheres negras são equiparadas a cavalos de corrida. Crianças sofrem mutações ao transformarem-se em jacarés, para não falar da constante caricaturização e exagero físico incidindo comumente na genitália, sendo que em vários trabalhos desta artista podemos ver pessoas a ser usadas como objecto sexual. Toda esta construção imagética ainda perdura, e é comum africanos serem representados desta maneira, da banda desenhada às embalagens de café, cevada, chocolates, etc. ¶ Num dos posters que acompanham o disco Coin Coin Chapter Three: River Run Thee, encontramos uma colagem com aquilo que parece um postal de uma mulher Afro-Americana numa cozinha a cuidar de alimentos, imagem que corresponde ao arquétipo das mulheres afro-descendentes remetidas para o papel de empregada doméstica subserviente. Nesse mesmo poster, como se fosse sangue, vemos sobrepostas impressões de mãos a vermelho. Mas o universo de Matana Roberts não se fecha em categorizações, e as colagens que encontramos no outro poster deste disco abrem-se a outras situações e personagens que não somente afro-descendentes. ¶ Encontramos recortes de uma pintura de estivadores ou amarradores (mulheres e homens), pedras funerárias com flores, uma jovem que sorri algures na década de 1920, gráficos de cotações da bolsa, uma colagem onde se encontram imagens quotidianas de pessoas que posam ociosamente, e outras que trabalham, como se Matana Roberts tentasse reunir todos aqueles que porventura poderiam reescrever a História de uma outra maneira, uma História feita por outras Estórias individuais, anónimas. A História daqueles que não foram incluídos na História, e dos que sofrem as consequências políticas, sociais, culturais da escrita oficial da História. 



As imagens que povoam as colagem de Matana são como pontos que podem ser unidos para a construção de novas constelações, abrindo possibilidades de contar uma nova Estória, numa sensibilidade cósmica que se reflecte numa espécie de estruturação e compreensão universal e até transcendental da realidade porque tem noção dos problemas do real. Mas apela a uma visão alargada, talvez espiritual, dos mesmos, não porque assume a conjuntura actual como o capricho de uma qualquer divindade, antes porque, tendo noção das causas e dos seus actores, apela a uma compreensão íntima/intimista dessas causas, pois essa compreensão tem de ser interiorizada por cada um. ¶ Cada qual, com a sua sensibilidade diferenciada, deve perceber que o poder sobre o outro é uma coisa passageira, que mais valerá compreender o vazio em que estamos e tentar fazer um pouco, que seja, desse nada. E, nesta abertura, há uma espécie de constelações/colagens de pendor espiritualista e universalista (não confundir com espírita, pois do que falamos é de espírito enquanto anima, enquanto sinergia intocável que congrega, que torna complexo, completo numa organicidade própria do caos, sendo intocável e não verbalizável, essa anima pode torna-se visível nas imagens apresentadas). como o trabalho do artista António Poppe, que, também ele, nas suas colagens e (re)colecções, vai organizando o caos, dando-lhe forma, uma forma orgânica e mutável, horizontal na escolha dos elementos. 


Nos trabalhos deste artista as imagens da pintura clássica europeia estão ao mesmo nível dos corais e das conchas, as máscaras africanas ao mesmo nível da poesia hindu, a escrita (encriptada?) ao mesmo nível das fotografias pessoais do artista. Tudo parece confluir numa ordem universal não monolítica porque flui, porque jorra, que celebra a diversidade e a co-existência. Abrindo-se e dirigindo-se ao Outro. Esta vontade de se dirigir e dialogar com o Mundo é como energia  em movimento que também é constante no trabalho de Matana Roberts, é uma oferta de si ao Mundo, ao Outro, mas num diálogo difícil, mágico, secreto, aberto também ele às singularidades de cada um. Termino este texto com um poema de uma poetisa muito cara a Matana, Emily Dickinson: ¶ Esta é a minha carta ao Mundo / Que nunca Me escreveu – / As simples Notícias que a Natureza contou – / Com a sua terna Majestade / A sua Mensagem é entregue / A Mãos que não posso ver – / Pelo Seu amor – Doces – concidadãos – / Fazei de Mim – um terno juízo (13)





publicado originalmente no fanzine Preto no Branco #5 em Janeiro de 2016



1 TUIAVII e SCHEURMANN, Erich, O Papalagui, Discursos de Tuiavii chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul, 12ª edição, Antígona, Lisboa, 1990, p. 73
2 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
3 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 34
4 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
5 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
6 http://www.otsh.mai.gov.pt/Noticias/Documents/OTSH_Infografico_TSH_2014.jpg , consultado a 12 de Dezembro de 2015
7 AYLER, Albert citado por BARRETO, Jorge Lima in Grande Música Negra, edições RÉS limitada, Cadernos de teoria e conhecimento 4, Porto, 1975, p. 29
8 ROBERTS, Matana, Was The Sacred Day in Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile, Constellation Records, Montreal, 2013
9 HAMMER, Fanny Lou citada por ROBERTS, Matana in Was The Sacred Day in Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile, Constellation Records, Montreal, 2013
10 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 39
11 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
12 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
13 DICKINSON, Emily, Poemas e cartas (Antologia para um recital), Livros Cotovia, Lisboa, 2000