refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços, o povo chocolate e mel
refavela, a fraqueza do poeta; o que ele revela, o que ele fala, o que ele vê. (1)
Encontrei este álbum por obra dos algoritmos do youtube (às vezes há algoritmos que acertam). Logo, na primeira escuta fiquei estupefacto, sim a palavra é essa porque me senti mesmo envolvido pela música, tão aberta e contagiante e tão poderosa politicamente que fiquei pasmado, magnetizado.
Mais tarde tive a sorte de encontrar o disco e poder adquiri-lo. A capa também ela me envolveu, o retrato de Gilberto Gil que se oferece à contemplação: um rosto bonito e orgulhoso mas contemplativo, os olhos semi-serrados parecem fitar uma luz rasa, um horizonte, será o futuro?
Este disco foi editado em 1977, no mesmo ano em que na Inglaterra os os punks gritavam que não havia futuro e que isto estava tudo condenado, do outro lado do atlântico e mais a Sul, Gil tomava consciência da importância de afirmar a sua negritude e de projectá-la de uma perspectiva crítica no futuro. Nesse ano Gilberto Gil participou do 2º Festac — Festival Mundial de Arte e Cultura Negra que foi um grande evento realizado em Lagos, na Nigéria, e que reuniu artistas negros e da diáspora negra. Estavam representados países da África e comunidades afro-descendentes, da América do Sul ao Caribe, passando pelos EUA e Europa. Este festival pretendia celebrar a cultura negra através da difusão e diálogo entre várias culturas num misto de movimento Pan-Africano politicamente engajado mas que ao mesmo tempo foi usado pelo governo para reforçar o poder na própria Nigéria. Fela Kuti afastou-se (ou foi afastado) do Festival e aparentemente teve até problemas com as autoridades (2), o que não fez com que Gilberto Gil deixasse de frequentar o círculo deste músico mundialmente conhecido. A influência deste encontro foi enorme, Gil nessa altura tinha 34 anos. O nome do disco foi pensado para fazer parte de um trilogia, precedido por Refazenda de 1975 de temática mais rural e Realce, de 1979, que é o disco que encerra este trio. Refavela então é um disco que fala dessa tomada de consciência aberta e plena da negritude brasileira, o título provem directamente da experiência na Nigéria, como comenta o artista: (…)reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas (3). Na letra da Música Refavela essa ideia está presente: O ambiente / Efervescente / De uma cidade a cintilar / A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Pr’um bloco do BNH [Banco Nacional da Habitação] (4). No interior do invólucro do disco podemos ver várias fotografias tiradas na Nigéria, Caetano Veloso incluído, assim como a comitiva brasileira e aspectos da vida quotidiana da capital e do Festival. O que Gilberto Gil neste disco pretendeu, com todas as influências que foi beber a Lagos, foi redireccionar essa energia para as raízes da cultura Africana no Brasil, pegando nos ritmos do Samba por exemplo, usando inclusivamente temas para blocos de escolas de Samba como a Ilê Aiyê (expressão que vem da língua Yoruba: ilê, ‘patria' e aiyê, 'para sempre' ou 'em eternidade’) (5). Somo crioulo doido / somo bem legal / Temo cabelo duro / Somo bleque pau (6) (em outras versões desta musica que podemos encontrar na internet, Bleque pau aparece como Black Power, tendo optado Gilberto Gil por adaptar a escrita à fonética da língua), aproveitando estes versos da música escrita por Paulinho Camafeu, Gil partindo da cadência sonora das palavras, faz uma incursão experimental, um ensaio talvez inconscinete e involuntário do que seria mais tarde o Hiphop. Ou seja, Gilberto Gil projecta novas sonoridades de influência Africana e faz surgir outras possibilidades musicais dessa mistura.
Apesar de se centrar em música de influência Africana directa, este é um álbum muito eclético musicalmente. No tema Balafon, Gilberto enumera as várias maneiras de referir a esse instrumento primordial usando esse instrumento tão importante em tantas culturas como possibilidade e símbolo de encontro e co-existência, explodindo a música em guitarras que não nos deixa resistir ao contágio de alegria e celebração abraçando o Afrobeat que recolheu na Nigéria. Cada vez que ouço esse tema não consigo deixar de sentir um insuflar de boa energia.
Na música No norte da Saudade também se abre espaço para sonoridades reagge e afro-caribenhas. O disco não se centra todo na temática da cultura negra, músicas como Nova Era por exemplo, falam-nos do questionar da ideia de tempo, da construção que é a História, da cristalização das ideias e ideais. Mas também O melhor lugar do mundo que nos vem recordar que devemos aproveitar todos os momentos e tirar partido do que de belo o instante contém. Mas apesar de serem letras mais intimistas nem por isso se desligam de todas as outras mais politizadas, aliás parece-me que as complementam e reforçam, só estas de foro mais íntimo fortalecem as outras mais compulsivas, lhes permitem ter espaço para reverberar em nós. Uma verdadeira revolução na consciência do colectivo não se fará sem que individualmente estejamos preparados para essa tomada (e conversão) do poder numa outra coisa que não o vigente.
Este texto foi escrito algum tempo antes de saber se quer que Gilbero Gil viria apresentar o disco num concerto em Belém, junto ao Tejo. Foi um momento mágico de entrega total e comunhão de todos os presentes. Gilberto Gil fez um comentário muito interessante, curto e oportuno: os barcos saíram em direcção ao Brasil à 500 anos daquele mesmo sítio onde naquela noite estava a ser apresentado este disco que fala de toda a construção na identidade afro-brasileira que é resultado directo das políticas económicas e sociais do Portugal daquela época. Achei significativo, olhar para os lugares onde se constrói a História e as estórias.
Voltando ao disco, o prefixo Re, em 1977 pretendia falar dos problemas raciais da sociedade brasileira. O título Refavela, explicitava a construção de novas Favelas mascaradas de melhoramento da vida dos brasileiros. Este é um problema que não foi resolvido, adensou-se, e não só no Brasil, o racismo prevalece encapuzado, se não é oficial, parece. Este disco infelizmente permanece actualíssimo e este ano em que Marielle Franco foi assassinada por representar um esforço na denúncia dos abusos da polícia militar nas intervenções nas Favelas do Rio de Janeiro é mais uma prova disso. A política do governo brasileiro cada vez está mais musculada e assenta num obscurantismo medieval que favorece os corruptos e perpetua a estratificação social. Espero com ansiedade pelos resultados das eleições no Brasil de dia 7 de Outubro, espero que a direita mais reaccionária seja arrasada! Tem de ser. Este disco apesar de ser urgente em 1977 e de infelizmente continuar a ser, prova que é a arte e são discos como este que nos dão alguma esperança e sentimento de resistência. Aconselho vivamente a sua escuta.
(Bolsonaro ganhou, e tudo o que parecia impossível aconteceu e é medonho o que tem acontecido de lá para esta data)
Texto publicado Originalmente no fanzine Cleópatra #11 em Outubro de 2018
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2 https://africaemquestao.wordpress.com/2012/07/27/trabalho-sobre-o-festival-negro-e-africano-das-artes-e-da-cultura-festac/
3 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=714&letra
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5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Aiy%C3%AA
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