sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Flux of Pink Indians: A merda dos caralhos tratam-nos como conas

Flux of Pink Indians . The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks / The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts . Spiderleg Tapes . 1984  A merda dos  caralhos tratam-nos como conas , É uma muito má e pouco polida tradução do título deste duplo álbum dos Flux of Pink Indians (FOPI), mas pode ser a que melhor encontro para transmitir a ideia do disco. Aqui, a redução dos géneros aos orgãos genitais (como é óbvio sabemos que esta questão é bem mais complexa que uma simples dicotomia e entendimento binário do géneros mas como falamos deste disco em específico vamos tentar ter uma abordagem mais simplificada e focarmo-nos nas disparidades e abusos sobre as mulheres e os seus corpos e sobre a cultura falocentrica e bélica que daí provem, não excluíndo que o propósito do álbum seja uma discussão mais alargada dentro dessas mesmas questões de género). Uma cona e um caralho em oposição, em confronto? Este duplo álbum de 1984 tem dois títulos, o disco 1 como The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks e o 2 como The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts. Quando saiu foi banido pelos distribuidores devido ao título e capa sexualmente explícitos, cópias foram apreendidas pela polícia, uma loja de discos foi acusada de exibir “Publicações com artigos obscenos com vista a obter lucro” (1). Afinal não era só na Jugoslávia e na RDA, por exemplo, que os punks eram intimados e controlados pelo estado (não estou a fazer apologias partidárias, apenas a esclarecer que também em países “democráticos” há controlo dos nossos movimentos e acções). As letras deste álbum são na sua maioria sobre essa mesma obscenidade que é a violência entre homens e mulheres baseadas na experiência de um membro da banda, que foi abusada sexualmente. Este é um álbum que nos fala também sobre outros assuntos nomeadamente a crítica o movimento punk, a guerra, o capitalismo, é um disco que em suma se encaixa perfeitamente no tipologia ideológica de uma banda Anarco-punk. Crítica e auto-crítica (que é sempre bem vinda). A primeira música, Punk, não se demora muito em críticas elaboradas à cena punk como os Crass fizeram, aqui apenas há a repetição da palavra Punk e suck, no final da música ouvimos o grande arroto. Esta é uma das músicas mais curtas do álbum, 1’30’’. Coisa atípica para uma banda punk, o resto das músicas alongam-se por vários minutos, até porque não há interrupções, o que ouvimos é quase uma cacofonia contínua. Esta primeira música anuncia aquilo que vamos ouvir no resto do álbum, velocidade e sujidade, muita sujidade. Se a bateria segue muitas vezes a norma daquela que é a bateria do punk, os FOPI acrescentam-lhe distorção em doses quase intoleráveis. Aliás, inaudibilidade é uma palavra que poderia definir este disco. A sujidade é tanta que parece carregada de matéria corrosiva, ácida, chega a parecer que as fitas de gravação foram queimadas  com ácido para obter essa corrosividade, esse desgaste. Mas o disco não se faz só de distorção embora seja essa grande bebedeira catártica, conseguida através do desgaste sonoro, que prevalece. Noise, noise e mais noise. Mas não temos aqui um disco de Harsh noise, lá pelo meio conseguimos até distinguir um baixo que às vezes faz até lembrar uns Joy Division menos polidos ou uns A Certain Ratio ao improviso aquando dos trompetes que se escutam aqui e ali. Colagens que se atropelam, interrompem-se músicas, para voltar ao que ouvíamos anteriormente de forma aparentemente abrupta, mas só aparentemente, há aqui um trabalho meticuloso de colagem à pinça que convém não esquecer ou menosprezar. É bom encontrar bandas que não se fecham sonoramente, abolindo o sectarismo musical. Esta banda conseguiu ter um muito alargado espectro de sonoridades, mesmo dentro de um único álbum. E ao longo da sua carreira conseguiram abraçar, o punk, a música industrial, o Dub, a poesia falada, gritada e cantada. Este The fucking cunts treat us like pricks faz uso de colagens de sons retirados de programas televisivos, fragmentos de conversas e loops que ajudam a alargar conceptualmente o disco, porque a própria música já não é produzida apenas por instrumentos musicais, e isso culminou no disco posterior Uncarved block que é um álbum fumegante, carregado de ecos e delays, uma bela peça de Dub dançante e ao mesmo tempo introspectivo, esse é um álbum parece ter sido todo feito em estúdio. Quer me parecer que o que pretendiam com o Fucking cunts era fazer uma peça sonora para se ouvir de seguida do princípio ao fim, não um disco com canções isoladas. 
Os Crass também ensaiaram essa ideia dentro das manifestações culturais proveniente do punk por isso é que ambas as bandas não tiveram sucesso comercial, como por exemplo os Sex Pistols ou os the Clash, foram até denunciantes da relação promiscua que as segundas tiveram com grandes companhias discográficas, questionando afinal para onde se dirigia o movimento punk. Ou seja, a música aqui é entendida como uma uma experiência estética e política proporcionada pelo som, uma ideia que se quer transmitir não apenas com ritmos construídos com instrumentos tradicionalmente usados em bandas pop-rock com uma estrutura formal de cantiga, mas com sons provenientes de outras fontes, alterados e mediados posteriormente, e isso é muito importante para quebrar barreiras naquilo que foi e ainda prevalece como uma ideia feita do que é a música punk e em última instância aquilo que se pensa ser a proposta do movimento punk. Punk não é só aprender 3 acordes e fazer uma banda, há de ser fazer à margem, questionando o centro. Politicamente ou artisticamente. Os Crass, por exemplo, fizeram-no com astúcia aproximando-se do centro (mesmo que em permanente crítica e auto-crítica e quando digo que os Crass se aproximaram do centro não quero dizer que tenham feito música pop para se relacionar com as pessoas, refiro-me por exemplo aos constantes actos de sabotagem à industria dos media ou à montagem sonora que fizeram em que simularam uma conversa entre Tatcher e Reagan em que Reagan em plena guerra fria dizia que ía usar a Europa como área de testes com mísseis nucleares (2). Essa fita foi distribuída com o máximo sigilo e anonimato mas mesmo assim foram descobertos, assediados, intimados  e controlados pela ScottLand Yard, vendo-se envolvidos num verdadeiro caso de contra-espionagem, em que se chegou a sugerir que teria sido o KGB a produzir essa fita com vista a acelerar as tensões entres os estados envolvidos na Guerra Fria. Esta é a aproximação do centro que referia, é estar no centro da mediatização, da atenção das instituições de controlo e espectáculo). Assim que os Crass se aperceberam de estarem a acercar-se demasiado do epicentro, devido a esse constante controlo e à paranóia que dele foi consequência, implodiram. Há várias questões que se levantam como por exemplo: até que ponto o pacifismo preconizado pelos Crass e também pelos Flux of Pink Indians é compatível com a agressão física, como é que o pacifismo pode ser arma de defesa? Não sei como estes projectos musicais, artísticos e políticos podem, a determinada altura, não reagir a provocações e intimações de violência física directa, mas também à violência resultante das políticas sociais de um estado, que pode ser  muitas vezes física mas sobretudo emocional; ou o que fazer com o poder que se obtém da contestação ao próprio poder? Tenho uma enorme admiração artística e política por estes projectos, mas não deixo de levantar estas questões, como os próprios fizeram, porque são de facto tão importantes. É que na verdade a questão e a resposta são o próprio percurso destas bandas: recusa do poder, contestação à margem, aquisição involuntária de poder, implosão como reacção e incapacidade de lidar com esse poder adquirido. Pode perceber-se o paradoxo em que se encontram os críticos que o fazem fora do sistema, se as bases que sustentam um sistema social não tiverem acesso à crítica a esse sistema, se não houver um trabalho de implementar e de se relacionar com essas bases, que mudança existirá e como? Quando me refiro à crítica, acho que pode ser também o fazer Arte e a experiência artística resultante do acesso à Arte. Não estou a defender uma espécie de messianismo, mas é urgente perceber que a distância entre a crítica e aqueles que de alguma maneira sustentam, ainda que inconscientemente, um sistema que os oprime, eventualmente não trará grandes resultados. Embora este próprio texto não passe de mais um exemplo desse desfasamento entre eu e os meus tios, por exemplo. Como é que se faz esse trabalho de desacreditação deste sistema tão complexo de forma congruente, verdadeiramente contestatária, inequívoca e sem fazer concessões, sem entrar no espaço mediatizado que transforma tudo em espectáculo? Não sei bem (mas tenho algumas parcas luzes que agora vou guardar para mim…). 
Voltemos ao disco dos FOPI. Apesar de ser um álbum que pretendia expor e denunciar a misoginia presente na Inglaterra e por todo o mundo nos anos 80, havia, por parte dos membros da banda a ideia de que tudo isto é um problema mais complexo e que o resultado desse sistema patriarcal é proveniente de um estado que promove a guerra, a manipulação mediática da informação, o fanatismo religioso, o capitalismo, etc. De facto é central a temática do abuso sexual e da violência sobre as mulheres. Há momentos no disco em que se sente uma náusea, tanto pela sonoridade agressiva, como pelas descrições horríveis de casos de violações e da própria exposição da vítima destas situações perante a polícia e tribunais e da acusação velada que muitas vezes pode saí resultar. Isto deve ser de facto traumático. Muito triste mesmo. Mas há também referências à guerra na Irlanda, à guerra nas Ilhas Maldivas, ao jornal Sun que estupidificava e continua a estupidificar os seus leitores, à guerra nuclear, à sociedade de espectáculo, à irresponsabilidade ecológica  e social dos governos, entre outros assuntos abordados neste disco de maneira bastante dissecada e explícita. É de louvar a percepção de que os problemas que envolvem o patriarcado e a violência sobre as mulheres faz parte de uma teia complicada, um emaranhado de relações económicas e sociais que nos aliena das causas dessa violência. Triste é perceber mais uma vez que todos estes problemas se intensificaram, forma-se um novelo que desvirtua os vínculos sociais e económicos e tudo ficou ainda mais confuso e denso e que é cada vez mais difícil distinguir onde está o alvo e para onde dirigir toda esta raiva, sendo sempre mais fácil culpar as camadas populacionais mais desprotegidas, bater no mais fraco. O Big Brother, afinal vivemo-lo “também” nos estados “democráticos”. A informação é cada vez mais difusa, embora tenhamos a sensação que nunca tivemos o acesso a ela tão facilitado. Álbuns assim ajudam-nos a destilar, a exorcizar e, esperançosamente, a reagir às agressões resultantes destes tempos sombrios em que vivemos.


Publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Outubro de 2018 e posteriormente adapatado para Banda Desenhada na Revista Decadente e Pentângulo #3





2 https://www.youtube.com/watch?v=QmfLP1IOip8
  

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