refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços, o povo chocolate e mel
refavela, a fraqueza do poeta; o que ele revela, o que ele fala, o que ele vê. (1)
Encontrei este álbum por obra dos algoritmos do youtube (às vezes há algoritmos que acertam). Logo, na primeira escuta fiquei estupefacto, sim a palavra é essa porque me senti mesmo envolvido pela música, tão aberta e contagiante e tão poderosa politicamente que fiquei pasmado, magnetizado.
Mais tarde tive a sorte de encontrar o disco e poder adquiri-lo. A capa também ela me envolveu, o retrato de Gilberto Gil que se oferece à contemplação: um rosto bonito e orgulhoso mas contemplativo, os olhos semi-serrados parecem fitar uma luz rasa, um horizonte, será o futuro?
Este disco foi editado em 1977, no mesmo ano em que na Inglaterra os os punks gritavam que não havia futuro e que isto estava tudo condenado, do outro lado do atlântico e mais a Sul, Gil tomava consciência da importância de afirmar a sua negritude e de projectá-la de uma perspectiva crítica no futuro. Nesse ano Gilberto Gil participou do 2º Festac — Festival Mundial de Arte e Cultura Negra que foi um grande evento realizado em Lagos, na Nigéria, e que reuniu artistas negros e da diáspora negra. Estavam representados países da África e comunidades afro-descendentes, da América do Sul ao Caribe, passando pelos EUA e Europa. Este festival pretendia celebrar a cultura negra através da difusão e diálogo entre várias culturas num misto de movimento Pan-Africano politicamente engajado mas que ao mesmo tempo foi usado pelo governo para reforçar o poder na própria Nigéria. Fela Kuti afastou-se (ou foi afastado) do Festival e aparentemente teve até problemas com as autoridades (2), o que não fez com que Gilberto Gil deixasse de frequentar o círculo deste músico mundialmente conhecido. A influência deste encontro foi enorme, Gil nessa altura tinha 34 anos. O nome do disco foi pensado para fazer parte de um trilogia, precedido por Refazenda de 1975 de temática mais rural e Realce, de 1979, que é o disco que encerra este trio. Refavela então é um disco que fala dessa tomada de consciência aberta e plena da negritude brasileira, o título provem directamente da experiência na Nigéria, como comenta o artista: (…)reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas (3). Na letra da Música Refavela essa ideia está presente: O ambiente / Efervescente / De uma cidade a cintilar / A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Pr’um bloco do BNH [Banco Nacional da Habitação] (4). No interior do invólucro do disco podemos ver várias fotografias tiradas na Nigéria, Caetano Veloso incluído, assim como a comitiva brasileira e aspectos da vida quotidiana da capital e do Festival. O que Gilberto Gil neste disco pretendeu, com todas as influências que foi beber a Lagos, foi redireccionar essa energia para as raízes da cultura Africana no Brasil, pegando nos ritmos do Samba por exemplo, usando inclusivamente temas para blocos de escolas de Samba como a Ilê Aiyê (expressão que vem da língua Yoruba: ilê, ‘patria' e aiyê, 'para sempre' ou 'em eternidade’) (5). Somo crioulo doido / somo bem legal / Temo cabelo duro / Somo bleque pau (6) (em outras versões desta musica que podemos encontrar na internet, Bleque pau aparece como Black Power, tendo optado Gilberto Gil por adaptar a escrita à fonética da língua), aproveitando estes versos da música escrita por Paulinho Camafeu, Gil partindo da cadência sonora das palavras, faz uma incursão experimental, um ensaio talvez inconscinete e involuntário do que seria mais tarde o Hiphop. Ou seja, Gilberto Gil projecta novas sonoridades de influência Africana e faz surgir outras possibilidades musicais dessa mistura.
Apesar de se centrar em música de influência Africana directa, este é um álbum muito eclético musicalmente. No tema Balafon, Gilberto enumera as várias maneiras de referir a esse instrumento primordial usando esse instrumento tão importante em tantas culturas como possibilidade e símbolo de encontro e co-existência, explodindo a música em guitarras que não nos deixa resistir ao contágio de alegria e celebração abraçando o Afrobeat que recolheu na Nigéria. Cada vez que ouço esse tema não consigo deixar de sentir um insuflar de boa energia.
Na música No norte da Saudade também se abre espaço para sonoridades reagge e afro-caribenhas. O disco não se centra todo na temática da cultura negra, músicas como Nova Era por exemplo, falam-nos do questionar da ideia de tempo, da construção que é a História, da cristalização das ideias e ideais. Mas também O melhor lugar do mundo que nos vem recordar que devemos aproveitar todos os momentos e tirar partido do que de belo o instante contém. Mas apesar de serem letras mais intimistas nem por isso se desligam de todas as outras mais politizadas, aliás parece-me que as complementam e reforçam, só estas de foro mais íntimo fortalecem as outras mais compulsivas, lhes permitem ter espaço para reverberar em nós. Uma verdadeira revolução na consciência do colectivo não se fará sem que individualmente estejamos preparados para essa tomada (e conversão) do poder numa outra coisa que não o vigente.
Este texto foi escrito algum tempo antes de saber se quer que Gilbero Gil viria apresentar o disco num concerto em Belém, junto ao Tejo. Foi um momento mágico de entrega total e comunhão de todos os presentes. Gilberto Gil fez um comentário muito interessante, curto e oportuno: os barcos saíram em direcção ao Brasil à 500 anos daquele mesmo sítio onde naquela noite estava a ser apresentado este disco que fala de toda a construção na identidade afro-brasileira que é resultado directo das políticas económicas e sociais do Portugal daquela época. Achei significativo, olhar para os lugares onde se constrói a História e as estórias.
Voltando ao disco, o prefixo Re, em 1977 pretendia falar dos problemas raciais da sociedade brasileira. O título Refavela, explicitava a construção de novas Favelas mascaradas de melhoramento da vida dos brasileiros. Este é um problema que não foi resolvido, adensou-se, e não só no Brasil, o racismo prevalece encapuzado, se não é oficial, parece. Este disco infelizmente permanece actualíssimo e este ano em que Marielle Franco foi assassinada por representar um esforço na denúncia dos abusos da polícia militar nas intervenções nas Favelas do Rio de Janeiro é mais uma prova disso. A política do governo brasileiro cada vez está mais musculada e assenta num obscurantismo medieval que favorece os corruptos e perpetua a estratificação social. Espero com ansiedade pelos resultados das eleições no Brasil de dia 7 de Outubro, espero que a direita mais reaccionária seja arrasada! Tem de ser. Este disco apesar de ser urgente em 1977 e de infelizmente continuar a ser, prova que é a arte e são discos como este que nos dão alguma esperança e sentimento de resistência. Aconselho vivamente a sua escuta.
(Bolsonaro ganhou, e tudo o que parecia impossível aconteceu e é medonho o que tem acontecido de lá para esta data)
Texto publicado Originalmente no fanzine Cleópatra #11 em Outubro de 2018
1 ver disco
2 https://africaemquestao.wordpress.com/2012/07/27/trabalho-sobre-o-festival-negro-e-africano-das-artes-e-da-cultura-festac/
3 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=714&letra
4 ver disco
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Aiy%C3%AA
6 ver disco
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
Flux of Pink Indians: A merda dos caralhos tratam-nos como conas
Flux of Pink Indians . The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks / The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts . Spiderleg Tapes . 1984 A merda dos caralhos tratam-nos como conas , É uma muito má e pouco polida tradução do título deste duplo álbum dos Flux
of Pink Indians (FOPI), mas pode ser a que melhor encontro para
transmitir a ideia do disco.
Aqui, a redução dos géneros aos orgãos genitais (como é óbvio sabemos que esta questão é bem mais complexa que uma simples dicotomia e entendimento binário do géneros mas como falamos deste disco em específico vamos tentar ter uma abordagem mais simplificada e focarmo-nos nas disparidades e abusos sobre as mulheres e os seus corpos e sobre a cultura falocentrica e bélica que daí provem, não excluíndo que o propósito do álbum seja uma discussão mais alargada dentro dessas mesmas questões de género). Uma cona e um caralho
em oposição, em confronto? Este duplo álbum de 1984 tem dois títulos, o
disco 1 como The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks e o 2 como The
Fucking Pricks Treat Us Like Cunts. Quando saiu
foi banido pelos distribuidores devido ao título e capa sexualmente
explícitos, cópias foram apreendidas pela polícia, uma loja de discos
foi acusada de exibir “Publicações com artigos obscenos com vista a
obter lucro” (1). Afinal não era só na Jugoslávia
e na RDA, por exemplo, que os punks eram intimados e controlados pelo
estado (não estou a fazer apologias partidárias, apenas a esclarecer que
também em países “democráticos” há controlo dos nossos movimentos e
acções). As letras deste álbum são na sua maioria
sobre essa mesma obscenidade que é a violência entre homens e mulheres
baseadas na experiência de um membro da banda, que foi abusada
sexualmente. Este é um álbum que nos fala também sobre outros assuntos
nomeadamente a crítica o movimento punk, a guerra,
o capitalismo, é um disco que em suma se encaixa perfeitamente no
tipologia ideológica de uma banda Anarco-punk. Crítica e auto-crítica
(que é sempre bem vinda). A primeira música, Punk, não se demora muito
em críticas elaboradas à cena punk como os Crass
fizeram, aqui apenas há a repetição da palavra Punk e suck, no final da
música ouvimos o grande arroto. Esta é uma das músicas mais curtas do
álbum, 1’30’’. Coisa atípica para uma banda punk, o resto das músicas
alongam-se por vários minutos, até porque não
há interrupções, o que ouvimos é quase uma cacofonia contínua. Esta
primeira música anuncia aquilo que vamos ouvir no resto do álbum,
velocidade e sujidade, muita sujidade. Se a bateria segue muitas vezes a
norma daquela que é a bateria do punk, os FOPI acrescentam-lhe
distorção em doses quase intoleráveis. Aliás, inaudibilidade é uma
palavra que poderia definir este disco. A sujidade é tanta que parece
carregada de matéria corrosiva, ácida, chega a parecer que as fitas de
gravação foram queimadas
com ácido para obter essa corrosividade, esse desgaste. Mas o
disco não se faz só de distorção embora seja essa grande bebedeira
catártica, conseguida através do desgaste sonoro, que prevalece. Noise,
noise e mais noise. Mas não temos aqui um disco
de Harsh noise, lá pelo meio conseguimos até distinguir um baixo que às
vezes faz até lembrar uns Joy Division menos polidos ou uns A Certain Ratio ao improviso aquando dos trompetes que se escutam aqui e ali. Colagens que se
atropelam, interrompem-se músicas, para voltar ao que ouvíamos
anteriormente de forma aparentemente abrupta, mas só
aparentemente, há aqui um trabalho meticuloso de colagem à pinça que
convém não esquecer ou menosprezar. É bom encontrar bandas que não se
fecham sonoramente, abolindo o sectarismo musical. Esta banda conseguiu
ter um muito alargado espectro de sonoridades,
mesmo dentro de um único álbum. E ao longo da sua carreira conseguiram
abraçar, o punk, a música industrial, o Dub, a poesia falada, gritada e
cantada. Este The fucking cunts treat us like pricks faz uso de colagens
de sons retirados de programas televisivos,
fragmentos de conversas e loops que ajudam a alargar conceptualmente o
disco, porque a própria música já não é produzida apenas por
instrumentos musicais, e isso culminou no disco posterior Uncarved
block que é um álbum fumegante, carregado de ecos e delays,
uma bela peça de Dub dançante e ao mesmo tempo introspectivo, esse é um
álbum parece ter sido todo feito em estúdio. Quer me parecer que o que
pretendiam com o Fucking cunts era fazer uma peça sonora para se ouvir
de seguida do princípio ao fim, não um disco
com canções isoladas.
Os Crass também ensaiaram essa ideia dentro das manifestações culturais proveniente do punk por isso é que ambas as bandas não tiveram sucesso comercial, como por exemplo os Sex Pistols ou os the Clash, foram até denunciantes da relação promiscua que as segundas tiveram com grandes companhias discográficas, questionando afinal para onde se dirigia o movimento punk. Ou seja, a música aqui é entendida como uma uma experiência estética e política proporcionada pelo som, uma ideia que se quer transmitir não apenas com ritmos construídos com instrumentos tradicionalmente usados em bandas pop-rock com uma estrutura formal de cantiga, mas com sons provenientes de outras fontes, alterados e mediados posteriormente, e isso é muito importante para quebrar barreiras naquilo que foi e ainda prevalece como uma ideia feita do que é a música punk e em última instância aquilo que se pensa ser a proposta do movimento punk. Punk não é só aprender 3 acordes e fazer uma banda, há de ser fazer à margem, questionando o centro. Politicamente ou artisticamente. Os Crass, por exemplo, fizeram-no com astúcia aproximando-se do centro (mesmo que em permanente crítica e auto-crítica e quando digo que os Crass se aproximaram do centro não quero dizer que tenham feito música pop para se relacionar com as pessoas, refiro-me por exemplo aos constantes actos de sabotagem à industria dos media ou à montagem sonora que fizeram em que simularam uma conversa entre Tatcher e Reagan em que Reagan em plena guerra fria dizia que ía usar a Europa como área de testes com mísseis nucleares (2). Essa fita foi distribuída com o máximo sigilo e anonimato mas mesmo assim foram descobertos, assediados, intimados e controlados pela ScottLand Yard, vendo-se envolvidos num verdadeiro caso de contra-espionagem, em que se chegou a sugerir que teria sido o KGB a produzir essa fita com vista a acelerar as tensões entres os estados envolvidos na Guerra Fria. Esta é a aproximação do centro que referia, é estar no centro da mediatização, da atenção das instituições de controlo e espectáculo). Assim que os Crass se aperceberam de estarem a acercar-se demasiado do epicentro, devido a esse constante controlo e à paranóia que dele foi consequência, implodiram. Há várias questões que se levantam como por exemplo: até que ponto o pacifismo preconizado pelos Crass e também pelos Flux of Pink Indians é compatível com a agressão física, como é que o pacifismo pode ser arma de defesa? Não sei como estes projectos musicais, artísticos e políticos podem, a determinada altura, não reagir a provocações e intimações de violência física directa, mas também à violência resultante das políticas sociais de um estado, que pode ser muitas vezes física mas sobretudo emocional; ou o que fazer com o poder que se obtém da contestação ao próprio poder? Tenho uma enorme admiração artística e política por estes projectos, mas não deixo de levantar estas questões, como os próprios fizeram, porque são de facto tão importantes. É que na verdade a questão e a resposta são o próprio percurso destas bandas: recusa do poder, contestação à margem, aquisição involuntária de poder, implosão como reacção e incapacidade de lidar com esse poder adquirido. Pode perceber-se o paradoxo em que se encontram os críticos que o fazem fora do sistema, se as bases que sustentam um sistema social não tiverem acesso à crítica a esse sistema, se não houver um trabalho de implementar e de se relacionar com essas bases, que mudança existirá e como? Quando me refiro à crítica, acho que pode ser também o fazer Arte e a experiência artística resultante do acesso à Arte. Não estou a defender uma espécie de messianismo, mas é urgente perceber que a distância entre a crítica e aqueles que de alguma maneira sustentam, ainda que inconscientemente, um sistema que os oprime, eventualmente não trará grandes resultados. Embora este próprio texto não passe de mais um exemplo desse desfasamento entre eu e os meus tios, por exemplo. Como é que se faz esse trabalho de desacreditação deste sistema tão complexo de forma congruente, verdadeiramente contestatária, inequívoca e sem fazer concessões, sem entrar no espaço mediatizado que transforma tudo em espectáculo? Não sei bem (mas tenho algumas parcas luzes que agora vou guardar para mim…).
Voltemos ao disco dos FOPI. Apesar de ser um álbum que pretendia expor e denunciar a misoginia presente na Inglaterra e por todo o mundo nos anos 80, havia, por parte dos membros da banda a ideia de que tudo isto é um problema mais complexo e que o resultado desse sistema patriarcal é proveniente de um estado que promove a guerra, a manipulação mediática da informação, o fanatismo religioso, o capitalismo, etc. De facto é central a temática do abuso sexual e da violência sobre as mulheres. Há momentos no disco em que se sente uma náusea, tanto pela sonoridade agressiva, como pelas descrições horríveis de casos de violações e da própria exposição da vítima destas situações perante a polícia e tribunais e da acusação velada que muitas vezes pode saí resultar. Isto deve ser de facto traumático. Muito triste mesmo. Mas há também referências à guerra na Irlanda, à guerra nas Ilhas Maldivas, ao jornal Sun que estupidificava e continua a estupidificar os seus leitores, à guerra nuclear, à sociedade de espectáculo, à irresponsabilidade ecológica e social dos governos, entre outros assuntos abordados neste disco de maneira bastante dissecada e explícita. É de louvar a percepção de que os problemas que envolvem o patriarcado e a violência sobre as mulheres faz parte de uma teia complicada, um emaranhado de relações económicas e sociais que nos aliena das causas dessa violência. Triste é perceber mais uma vez que todos estes problemas se intensificaram, forma-se um novelo que desvirtua os vínculos sociais e económicos e tudo ficou ainda mais confuso e denso e que é cada vez mais difícil distinguir onde está o alvo e para onde dirigir toda esta raiva, sendo sempre mais fácil culpar as camadas populacionais mais desprotegidas, bater no mais fraco. O Big Brother, afinal vivemo-lo “também” nos estados “democráticos”. A informação é cada vez mais difusa, embora tenhamos a sensação que nunca tivemos o acesso a ela tão facilitado. Álbuns assim ajudam-nos a destilar, a exorcizar e, esperançosamente, a reagir às agressões resultantes destes tempos sombrios em que vivemos.
Publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Outubro de 2018 e posteriormente adapatado para Banda Desenhada na Revista Decadente e Pentângulo #3
Os Crass também ensaiaram essa ideia dentro das manifestações culturais proveniente do punk por isso é que ambas as bandas não tiveram sucesso comercial, como por exemplo os Sex Pistols ou os the Clash, foram até denunciantes da relação promiscua que as segundas tiveram com grandes companhias discográficas, questionando afinal para onde se dirigia o movimento punk. Ou seja, a música aqui é entendida como uma uma experiência estética e política proporcionada pelo som, uma ideia que se quer transmitir não apenas com ritmos construídos com instrumentos tradicionalmente usados em bandas pop-rock com uma estrutura formal de cantiga, mas com sons provenientes de outras fontes, alterados e mediados posteriormente, e isso é muito importante para quebrar barreiras naquilo que foi e ainda prevalece como uma ideia feita do que é a música punk e em última instância aquilo que se pensa ser a proposta do movimento punk. Punk não é só aprender 3 acordes e fazer uma banda, há de ser fazer à margem, questionando o centro. Politicamente ou artisticamente. Os Crass, por exemplo, fizeram-no com astúcia aproximando-se do centro (mesmo que em permanente crítica e auto-crítica e quando digo que os Crass se aproximaram do centro não quero dizer que tenham feito música pop para se relacionar com as pessoas, refiro-me por exemplo aos constantes actos de sabotagem à industria dos media ou à montagem sonora que fizeram em que simularam uma conversa entre Tatcher e Reagan em que Reagan em plena guerra fria dizia que ía usar a Europa como área de testes com mísseis nucleares (2). Essa fita foi distribuída com o máximo sigilo e anonimato mas mesmo assim foram descobertos, assediados, intimados e controlados pela ScottLand Yard, vendo-se envolvidos num verdadeiro caso de contra-espionagem, em que se chegou a sugerir que teria sido o KGB a produzir essa fita com vista a acelerar as tensões entres os estados envolvidos na Guerra Fria. Esta é a aproximação do centro que referia, é estar no centro da mediatização, da atenção das instituições de controlo e espectáculo). Assim que os Crass se aperceberam de estarem a acercar-se demasiado do epicentro, devido a esse constante controlo e à paranóia que dele foi consequência, implodiram. Há várias questões que se levantam como por exemplo: até que ponto o pacifismo preconizado pelos Crass e também pelos Flux of Pink Indians é compatível com a agressão física, como é que o pacifismo pode ser arma de defesa? Não sei como estes projectos musicais, artísticos e políticos podem, a determinada altura, não reagir a provocações e intimações de violência física directa, mas também à violência resultante das políticas sociais de um estado, que pode ser muitas vezes física mas sobretudo emocional; ou o que fazer com o poder que se obtém da contestação ao próprio poder? Tenho uma enorme admiração artística e política por estes projectos, mas não deixo de levantar estas questões, como os próprios fizeram, porque são de facto tão importantes. É que na verdade a questão e a resposta são o próprio percurso destas bandas: recusa do poder, contestação à margem, aquisição involuntária de poder, implosão como reacção e incapacidade de lidar com esse poder adquirido. Pode perceber-se o paradoxo em que se encontram os críticos que o fazem fora do sistema, se as bases que sustentam um sistema social não tiverem acesso à crítica a esse sistema, se não houver um trabalho de implementar e de se relacionar com essas bases, que mudança existirá e como? Quando me refiro à crítica, acho que pode ser também o fazer Arte e a experiência artística resultante do acesso à Arte. Não estou a defender uma espécie de messianismo, mas é urgente perceber que a distância entre a crítica e aqueles que de alguma maneira sustentam, ainda que inconscientemente, um sistema que os oprime, eventualmente não trará grandes resultados. Embora este próprio texto não passe de mais um exemplo desse desfasamento entre eu e os meus tios, por exemplo. Como é que se faz esse trabalho de desacreditação deste sistema tão complexo de forma congruente, verdadeiramente contestatária, inequívoca e sem fazer concessões, sem entrar no espaço mediatizado que transforma tudo em espectáculo? Não sei bem (mas tenho algumas parcas luzes que agora vou guardar para mim…).
Voltemos ao disco dos FOPI. Apesar de ser um álbum que pretendia expor e denunciar a misoginia presente na Inglaterra e por todo o mundo nos anos 80, havia, por parte dos membros da banda a ideia de que tudo isto é um problema mais complexo e que o resultado desse sistema patriarcal é proveniente de um estado que promove a guerra, a manipulação mediática da informação, o fanatismo religioso, o capitalismo, etc. De facto é central a temática do abuso sexual e da violência sobre as mulheres. Há momentos no disco em que se sente uma náusea, tanto pela sonoridade agressiva, como pelas descrições horríveis de casos de violações e da própria exposição da vítima destas situações perante a polícia e tribunais e da acusação velada que muitas vezes pode saí resultar. Isto deve ser de facto traumático. Muito triste mesmo. Mas há também referências à guerra na Irlanda, à guerra nas Ilhas Maldivas, ao jornal Sun que estupidificava e continua a estupidificar os seus leitores, à guerra nuclear, à sociedade de espectáculo, à irresponsabilidade ecológica e social dos governos, entre outros assuntos abordados neste disco de maneira bastante dissecada e explícita. É de louvar a percepção de que os problemas que envolvem o patriarcado e a violência sobre as mulheres faz parte de uma teia complicada, um emaranhado de relações económicas e sociais que nos aliena das causas dessa violência. Triste é perceber mais uma vez que todos estes problemas se intensificaram, forma-se um novelo que desvirtua os vínculos sociais e económicos e tudo ficou ainda mais confuso e denso e que é cada vez mais difícil distinguir onde está o alvo e para onde dirigir toda esta raiva, sendo sempre mais fácil culpar as camadas populacionais mais desprotegidas, bater no mais fraco. O Big Brother, afinal vivemo-lo “também” nos estados “democráticos”. A informação é cada vez mais difusa, embora tenhamos a sensação que nunca tivemos o acesso a ela tão facilitado. Álbuns assim ajudam-nos a destilar, a exorcizar e, esperançosamente, a reagir às agressões resultantes destes tempos sombrios em que vivemos.
Publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Outubro de 2018 e posteriormente adapatado para Banda Desenhada na Revista Decadente e Pentângulo #3
2 https://www.youtube.com/watch?v=QmfLP1IOip8
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