quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Klein - Lifetime

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  


     Lifetime (editado em 2019) é uma viagem por um dia de Klein, ou pela vida de Klein – que poderia ser a nossa também (?).
 

    E na experiência de Klein podemos reconhecer em parte os traumas da nossa vida, do nosso viver contemporâneo. Com um tom diarístico e com uma carga emocional e confessional muito forte, as música são construídas por camadas, com loops, gravações espontâneas de conversas, de sons quotidianos, de programas de televisão e de outros canais de informação, misturados com teclados, guitarras muito tímidas e a harmónica que Klein, neste álbum, resolveu assumir. Estas falas/vozes murmuram de diferentes espaços e cada espaço é como quarto de onde ecoam fantasmas. Klein apresenta o álbum como uma espécie de puzzle, onde vários fragmentos constroem uma coisa maior, daí fazer sentido ouvir o álbum todo por inteiro, com muita atenção, para que essa viagem pelo lado obscuro da artista seja uma experiência mais completa e complexa. Mas é interessante verificar como qualquer pessoa conseguirá rever-se neste álbum, nesta catarse da indefinição e justaposição de emoções e marasmo do viver contemporâneo. Se o lado A é mais obscuro, o lado B traz alguma luz, uma luz céptica, mas que, ainda assim, ilumina e ajuda a encontrar um qualquer caminho para um mundo onde o sol é a cara amarelada de um bebé que nos conforta e nos dá os bons dias pela televisão – como aquele no mundo alucinado e naif dos Teletubies, talvez. Na música For What Worth, Klein convida Matana Roberts para uma parceria, e aqui o saxofone de Matana traz algum embalo. Ainda que melancólico, este instrumento consegue trazer-nos algum consolo (Matana Roberts é uma das minhas artistas preferidas de sempre, vale a pena uma pesquisa atenta). Também a harmónica de Klein, nos traz algum aconchego, que é colmatado em alguns momentos com cantos religiosos gospel transformados em loop que se convertem num mantra de embalo. A religião e o canto religioso são o background de Klein e neste álbum acabam por ocupar uma espaço importante, sobretudo no lado B, que tem um tom francamente mais espiritual e etéreo. Este é um disco de electrónicas retorcidas e abstractas, demasiado pesado e sombrio para ser um disco Pop, mas com certeza é um disco brilhante de reflexão – ainda que a intuição seja super importante no processo artístico, segundo a própria Klein – sobre o pesadelo da omnipresença e da vivência da cultura Pop em que estamos submergidos, mas que não conseguimos escapar ou renegar. Um bom exercício de catarse, de alguma maneira, de aceitação do trauma, onde as referência mais prosaicas e ordinárias conseguem conviver com os estados emocionais mais espirituais e introspectivos. Não é um objecto bonito, não é nada cute, mas é um objecto poderoso! Talvez seja um disco de empoderamento, de tomada de consciência, de domínio do real. Um regurgitar ácido da contemporaneidade.


    De realçar a capa e contra capa do disco, trabalho do artista Lacra. Esta capa revela um pormenor discreto, que não consigo relegar como secundário que é a bandeira do UK nas calças da figura que posa, este corpo negro, agachado, com mãos e pés de dimensões exageradas, com o cabelo branco entrançado, de olhar (no) vazio, sobre um fundo escuro com aquilo que se assemelha a um oceano por baixo. Parece coisa pouca, mas a mim surge como uma referência importante ao contexto soció-cultural de Klein. Afinal, talvez este não seja um disco universalista sobre o transe de alienação colectiva. Há outra camada, que está logo na capa, a primeira coisa que se dá a ver e é um quase manifesto escarrapachado – sugere-se aqui uma aproximação ao conceito desenvolvido, entre outros, por Aimé Césaire que é afirmação de uma visão do mundo através da negritude da artista: esta música tem o poder de tocar a todos, claro, mas este acto criativo existe e dá-se a conhecer segundo a consciência critica da experiência individual e colectiva da artista, uma jovem filha de pais imigrantes nigerianos a viver em Inglaterra.

 

 

Texto publicado originalmente no fanzine Skate Snake Zine #2 em 2021


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