sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

The Residents: antropofagia nos Estados Unidos em 76

Ao ouvir o disco The Third Reich’N Roll dos The Residents, recordei-me do Manifesto Antropofágico de Oswald, dos rituais antropofágicos e da ideia de antropofagia (do grego anthropos, homem e phagein, comer) que é a ingestão de carne humana em certas tribos, não por necessidades de nutrição, antes para absorção de poderes e atributos daquele que era ingerido, na maioria dos casos este acto era um ritual mágico para prestar homenagem a alguém e adquirir as suas características. O Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia em 1928, escrito por Oswald de Andrade, alude a uma ideia de ingestão da cultura europeia que foi e é estabelecida como progressista, iluminada e iluminante e que foi imposta às populações indígenas do Brasil, que deveria ser regurgitada num outro entendimento da identidade brasileira enquanto cultura construída a partir da sua real entidade pré-colonial em relação com a cultura ocidental industrializada. Tal como o índio Tupi, a cultura brasileira deveria ingerir a europeia resultando dessa digestão uma espécie de absorção das características positivas da Europa colonizadora pelo corpo cultural brasileiro. O índio Tupi comeria o seu inimigo para ficar mais forte. O que defendia a utopia antropofágica modernista era que dessa ingestão resultaria uma verdadeira emancipação da cultura brasileira, afastada da burguesa e patriarcal europeização ¶ Esta corrente modernista brasileira defendia que o Brasil deveria iniciar uma revolução no entendimento da sua relação cultural (e política) com o peso do violento passado de um território colonizado por Portugal e pela Europa enquanto conjunto de estados imperialistas, que enraizaram à força a sua cultura ao longo dos séculos como a única e universal, asfixiando e demonizando as estruturas culturais, politicas e sociais das populações donas desses territórios ¶ Este disco dos The Residents fez-me pensar nessa ideia de antropofagia ¶ Pode-se pensar nos The Residents como os antropófagos dos EUA, neste álbum ingerem cerca de trinta músicas do top 40 americano dos anos 60 e regurgitam duas suítes, Swastikas On Parade e Hitler Was a Vegetarian.
O que os The Residents propunham em 1976, com este disco lançado pela Ralph Records era uma ideia antropofágica de intervencionar o Top 40 dos E.U.A e o resultado foi este álbum. (Double shot) Of my baby’s love dos americanos The Swinging Medallions, é uma música solarengamente adolescente. Woke up this morning, my head was so bad/ The worst hangover that I ever had, no disco dos The Residents é cantado por um coro ressacado, o enjoo é tão enfatizado que a sensação é a de uma grande vertigem, uma insuportável dor de cabeça, um arrastado sofrimento. A náusea e decadência, são aliás sentimentos que nos vão acompanhando ao longo de todo o disco. Na versão de Light my fire dos The Doors há a repetição do refrão dessa canção por uma voz masculina completamente decrépita, com um acompanhamento musical característico da imagética relacionada aos circos decadentes. Qualquer sexualidade que pudesse emanar da voz e do corpo de Jim Morrison é aqui aniquilada, temos antes um homem caduco que num tom superior ordena Come on baby light my fire, come on baby light my fire, mas que na verdade o que diz, soa mais a uma imploração vomitada e agressiva, de quem, numa última tentativa de provar as suas faculdades sexuais, o que acaba por nos mostrar é a sua humilhante situação de perda da sexualidade. Faz-nos imaginar um corpo arruinado e rejeitado. Se havia sensualidade nessa música os The Residents dão-nos bizarria e fealdade. Também a música, In a Gadda da Vida dos Iron Butterfly, uma banda hard-rock psicadélica, é transformada em música punk, e o que o punk tem de rude e áspero está nesta versão, a voz tem o atrito, a bateria tem a velocidade e precisão, quase roça o hard-core, o crust, ou alguns desvios musicalmente ainda mais agressivos da música punk. O que fica é de novo o enjoo, a decrepitude que percorre as duas músicas que compõem o álbum. A ligar todos os trechos de músicas está um emaranhado de tecidos sonoros, através do qual se ligam todas as versões das músicas que foram alvo de apropriação por parte dos The Residents, contribuindo esses interlúdios para que o disco soe familiar e totalmente alien ao mesmo tempo (1) . Esses arranjos, sejam eles samples de metralhadoras, acidentes de automóvel, improvisações jazz caóticas que podem fazer lembrar Sun Ra ou o uso de instrumentos musicais de baixa qualidade, são como delicadas membranas que unem as músicas intervencionadas (destruídas) pelos The Residents. Mesmo passados cerca de 35 anos, algumas dessas intervenções podem fazer-nos lembrar algumas práticas na música exploratória contemporânea como são, por exemplo os Hype Williams, que para além de recorrerem a samples de sons das mais variadas situações quotidianas e da cultura pop, como jogos de consolas fazem, também eles, uma apropriação de outras músicas, distorcendo-as e decompondo-as para a criação de novas, e também nos seus álbuns (principalmente nos primeiros) há um arrastamento, quase uma suspensão do tempo que vai decorrendo lentamente, mas em vez da cacofonia agressiva do The Third Reich’N Roll ainda que se sinta um arrastamento, nos Hype Williams há uma óbvia ambiência fumegante, quase adocicada onde são reciclados os anos 80, 90 e o advento da cultura pop a uma escala global associada a essas décadas. Parece-me que os The Residents abriram as portas a novas sonoridades, recorrendo ao uso da música popular parodiando-a, destruindo-a regurgitando uma nova maneira de pensar a música fora dos círculos ligados à teorização musical. Sempre houve nos The Residents uma vontade de fazer música sobre música (2) , e com essa metalinguagem pavimentaram-se novos caminhos em direcção a um entendimento contemporâneo da cultura, há espaço para a auto-referencialidade, e também para uma desejável auto-crítica. Mas, e é aqui que julgo que os The Residents são importantes, apesar de lidarem com assuntos sobre a ideia de música como algo que pode e deve questionar os seus limites, eles fizeram isso com a música proveniente da cultura popular e com humor, desenvolvendo as suas investigações musicais usando os modelos que adoptaram dessa mesma cultura de massas, e a sua criação foi mostrada não apenas dentro dos círculos intelectualizados, mas nos circuitos da cultura popular, replicando essas estratégias de marketing e divulgação, mas por causa da sua criatividade, espírito vanguardista de não alinhamento e principalmente, por causa da sua música difícil, diferenciaram-se dos ícones Pop comuns. São exemplos da replicação das estruturas basilares da Pop os concertos públicos, os discos, a criação de uma identidade/marca que os promovia e sobretudo a invenção de quatro personagens, à imagem de várias bandas da cultura popular, como os Beatles ou os Rolling Stones (sempre na mira dos The Residents, entre outros) que os admiradores podem idolatrar, sendo que os The Residents trocaram um corpo por um olho gigante na cabeça e por um smoking, imagem que foi sendo alterada ao longo do tempo, e, julgo eu, foi esta ausência de um corpo visível e reconhecível, o anonimato dos artistas que permitiu que os The Residents pudessem continuar ainda hoje com o seu trabalho, porque de facto qualquer pessoa pode tomar o lugar do anterior nesta banda, e nenhum posto é irrevogável, sendo assim o projecto (colectivo?) pode continuar. Este disco, apresenta-se também como uma clara crítica à subversão da revolta que se profetizou com o aparecimento do rock’n roll, o sistema absorveu a juventude e integrou-a, juntamente com as suas manifestações culturais, num sistema capitalista pasmacento e confortável, encabeçado por algumas solarengas bandas de surf e garage-rock. 



Podemos ver na capa deste disco o cartoon Dick Clark vestido com uma farda nazi e jovens casais com a cara de Adolf Hitler a dançar em seu redor. Uma imagem cómica do controlo das massas pela música convencionada e dentro das regras. Uma ilustração maquiavélica mas bem humorada do totalitarismo cultural. Se ouvíssemos de seguida as músicas originais que foram torcidadas pelos The Residents neste disco, provavelmente teríamos uma festa com música dos anos 60 divertida, que ainda hoje nos diverte, mas o que eles fizeram foi pegar nessa ingénua vontade de aparentemente viver sem preocupações, fomentada nos EUA (apesar da guerra do Vietnam e dos graves conflitos sociais internos, como a segregação racial e as diferenças abismais entre classes por exemplo) e transformar tudo isso num avassalador caos musical obscuro e indisposto. Exactamente por todas estas questões ligadas à crítica da cultura de massas e aos aspectos socio-políticos inerentes, juntando-lhes a complexidade rítmica e de texturas sonoras faz dos The Residents e deste disco, The Third Reich’N Roll, uma obra que merece ser ouvida e compreendida com toda a atenção e seriedade, apesar de toda a carga cómica e satírica que sempre foi constante neste projecto.



publicado originalmente na publicação O Príncipio em Novembro de 2013

1 POUNCEY, Edwin, The Primer: The Residents in The Wire, nº 204, Londres, Fevereiro 2001, p. 45 
2 http://www.residents.com/historical4/classic/page11/page11.php





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