quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Milton Nascimento - Geraes


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    O que escrever sobre Milton Nascimento? Perante a obra dele é fácil ficar soterrado em tamanha beleza e engenho - emudecido. Agora mesmo, que me sento para escrever enquanto escuto este álbum, as palavras não saem, fico só a cantar com Milton: “que vontade eu tenho de sair, num carro de boi, ir por aí, estrada de terra que só me leva só me leva, nunca mais me traz, que vontade de não mais voltar, quanta coisa que vou conhecer, pés no chão e os olhos vão procurar onde foi que me perdi!. Não é raro emocionar-me com esta música, Como agora, que estou aqui a escutá-la enquanto escrevo: “Barro pedra pó e nunca mais”. 

    Geraes é um álbum que me põe em contacto com as minhas mais intimas emoções, desejos, frustrações, sonhos. É um álbum sobre movimento, é assim que o sinto, uma propulsão em deriva numa sede de futuro, de desconhecido, de aventura. Uma estranha simbiose de passado e futuro, que resulta num presente luminoso, permeia este disco. Um presente luminoso porque há uma promessa de futuro regenerativo: “volver a los 17, después de vivir un siglo, es como decifrar signos sin ser sabio competente, volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo como un niño frente a dios, eso es lo que siento yo en este instante fecundo.” O futuro vai tomando conta do presente, “se va enredando enredando, como en el muro la hiedra y va brotando, brotando como el musguito en la piedra”, ai sim sim sim sim! Cantam a música de Violeta Parra (génio maior da música chilena), em dueto Milton e Mercedes Soza. 


    Também em duo, o arrepio que vem do instrumento vocal de Milton em O que será (à Flor da pele), clássico de resistência inadiável e pulsão visceral de Chico Buarque: “o que será que será que dá dentro da gente e não devia, o que não tem descanso, nem nunca terá, o que não tem cansaço, nem nunca terá, o que não tem limite”. A magia dessa música é que, em ambas as versões (há duas!), tanto parecem falar de um furor inadiável de resistência política, como de uma pulsão sexual que não mais pode ficar contida, ambas são sinónimos de libertação, e amigos e amigas, se forem ver o vídeo de Chico a cantar essa música com Milton em dueto, é impossível não sentir a sensualidade homoerótica que aqueles homens lindos transpirando emanam.
Não esquecer que este disco foi gravado durante a mortal ditadura militar Brasileira: é com mestria que se andava às voltas com as palavras, ainda assim, passam estas, um pouco mais explícitas: “quem cala sobre o teu corpo consente, na tua morte talhada a ferro e fogo, nas profundezas do corte que a bala riscou no peito. Quem cala morre contigo mais morto do que estás agora, mas quem grita vive contigo!”. Esta música foi composta como um tributo ao estudante Edson Luís de Lima Souto, morto com um tiro no coração, em 1968, aos dezoito anos, durante a invasão do restaurante Calabouço, um ponto de encontro de jovens, mantido pelo governo para fornecer refeições a estudantes carentes do Rio de Janeiro. Os estudantes participavam de mais uma das manifestações da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC) contra o aumento abusivo do preço da refeição e pela melhoria e conclusão das obras do restaurante. As paredes ficaram crivadas de balas. Edson Luís tornou-se um mártir do movimento estudantil. O acontecimento impulsionou, em junho daquele ano, a maior manifestação popular até então realizada contra a ditadura. Ao escutar esta música penso em todos os estados que matam para conter a revolta, para conter a luta pela dignidade da vida. Não consigo deixar de pensar no povo palestiniano, não consigo deixar de pensar no genocídio que Israel está a cometer neste preciso momento. Não consigo deixar de pensar em toda a violência exercida em todo o lado contra aqueles que desejam uma vida justa e digna, longe e também aqui, nas nossas ruas. A Barbárie espalhada e escarrapachada por esse mundo fora. 


    Outra música de celebração da resistência é Circo Marimbondo: “Circo Marimbondo, eu cheguei de longe não me atrapaia, vê se não me amola, larga a minha saia, se eu te dar um tombo, tomara que caia”. Caia toda a opressão! Caia! 


    Um álbum de riqueza tão grande não se faz sozinho, claro está, é um trabalho colectivo, de confluência de muitas sensibilidades, de encontro que só enriquece, que faz crescer, porque é assim que deviam ser os encontros, não do saque e da exploração, Promessa de Sol, música de influencia andina, em que contribuem, entre outros, o conjunto musical chileno Água, fala-nos sobre uma consciência cosmológica e ecológica do mundo, de genocídio, de revolta contra as concepções vitimistas que temos sobre as populações indígenas: “vocês me quer belo eu não sou belo mais, me levaram tudo o que um homem precisa ter, me cortaram o corpo à faca sem terminar, me deixando vivo, sem sangue a apodrecer. Você me quer justo e eu não sou justo mais, promessas de sol já não queimam meu coração. Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”


    Em suma, Gerais, é um dos mais belos alguns jamais gravados, na minha opinião, complexo, com um certo hermetismo que o torna tão especial, político, mas poético. E deixa-nos uma mensagem para o futuro, para uma ideia de futuro em movimento, que não pára, como mencionado antes, que se “va enredando, enredando, como en el muro la hiedra y va brotando, brotando, como el musguito en la piedra!” Sejamos essa hera e esse musgo. Agarremo-nos como toda a força à ideia de futuro. Para que o futuro não seja o passado. 

 

Texto publicado originalmente no fanzine Skate Snake Zine #4 em 2024