segunda-feira, 14 de julho de 2025





LIVE @ EAST SIDE RADIO - 6 / 6 / 2025

  

 Priscilla Ermel, Campos de sonhos, Campo de sonhos, Eldorado, 1992, retirado da compilação Priscilla Ermel - Origens da Luz, Music From Memory, 2020

Valentina Magaletti, A Queer Anthology of DrumsA Queer Anthology of Drums, Takuroku, 2020, retirado da edição em vinyl pela bié Records, 2022

Xexa, Nha Dêdê, Vibrações de Prata, Príncipe Discos, 2023 

Maxxxbass, Untitled, Gone Fishing, L.I.E.S Records, 2018 

Rmazi, Piton, Phobiza Amor Fati Vol. 3, Fati Recods, 2018

Serpente, Símbolo III, Parada, Ecstatic, 2019

Paulo Moura, Bicho PapãoConfusão Urbana, Suburbana E Rural, RCA Victor, 1976

 Travadinha, Ó Bernardo, Feiticeira de cor morena, Associação de Amizade Portugal - Cabo Verde e Associação Cabo Verdiana, 1986

 Fullwood (George Fullwood & Soul Syndicate Band), Stop and Think It over, Freedom Sounds 1999, retirado da compilação Harmony, Melody & Style (Lovers Rock In The UK 1975-1992) (Volume Two), Soul Jazz Records, 2012

 Blackbeard, Electrocharge, I Wah Dub, More Cut Records, 1980, reedição de 2021

 Bô'vel, Best Thing, Changes, Anthens of the North, 2024

Dido, Mermeid, Ksana, 1994, retirado da compilação Heisei No Oto (Japanese Left-Field Pop From The CD Age, 1989-1996), Music From Memroy, 2021

 Edson Natale, Par de Asas, Nina Maika, Natale Produções Artísticas, 1990, reedição da New Dawn, 2021

Rosinha Valença, Os Grilos são Astros, Cheiro de Mato, Odeon, 1976

Lena d'Água, Sempre que o amor me quiser, Lusitânia, EMI, 1984 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Milton Nascimento - Geraes


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    O que escrever sobre Milton Nascimento? Perante a obra dele é fácil ficar soterrado em tamanha beleza e engenho - emudecido. Agora mesmo, que me sento para escrever enquanto escuto este álbum, as palavras não saem, fico só a cantar com Milton: “que vontade eu tenho de sair, num carro de boi, ir por aí, estrada de terra que só me leva só me leva, nunca mais me traz, que vontade de não mais voltar, quanta coisa que vou conhecer, pés no chão e os olhos vão procurar onde foi que me perdi!. Não é raro emocionar-me com esta música, Como agora, que estou aqui a escutá-la enquanto escrevo: “Barro pedra pó e nunca mais”. 

    Geraes é um álbum que me põe em contacto com as minhas mais intimas emoções, desejos, frustrações, sonhos. É um álbum sobre movimento, é assim que o sinto, uma propulsão em deriva numa sede de futuro, de desconhecido, de aventura. Uma estranha simbiose de passado e futuro, que resulta num presente luminoso, permeia este disco. Um presente luminoso porque há uma promessa de futuro regenerativo: “volver a los 17, después de vivir un siglo, es como decifrar signos sin ser sabio competente, volver a ser de repente tan frágil como un segundo, volver a sentir profundo como un niño frente a dios, eso es lo que siento yo en este instante fecundo.” O futuro vai tomando conta do presente, “se va enredando enredando, como en el muro la hiedra y va brotando, brotando como el musguito en la piedra”, ai sim sim sim sim! Cantam a música de Violeta Parra (génio maior da música chilena), em dueto Milton e Mercedes Soza. 


    Também em duo, o arrepio que vem do instrumento vocal de Milton em O que será (à Flor da pele), clássico de resistência inadiável e pulsão visceral de Chico Buarque: “o que será que será que dá dentro da gente e não devia, o que não tem descanso, nem nunca terá, o que não tem cansaço, nem nunca terá, o que não tem limite”. A magia dessa música é que, em ambas as versões (há duas!), tanto parecem falar de um furor inadiável de resistência política, como de uma pulsão sexual que não mais pode ficar contida, ambas são sinónimos de libertação, e amigos e amigas, se forem ver o vídeo de Chico a cantar essa música com Milton em dueto, é impossível não sentir a sensualidade homoerótica que aqueles homens lindos transpirando emanam.
Não esquecer que este disco foi gravado durante a mortal ditadura militar Brasileira: é com mestria que se andava às voltas com as palavras, ainda assim, passam estas, um pouco mais explícitas: “quem cala sobre o teu corpo consente, na tua morte talhada a ferro e fogo, nas profundezas do corte que a bala riscou no peito. Quem cala morre contigo mais morto do que estás agora, mas quem grita vive contigo!”. Esta música foi composta como um tributo ao estudante Edson Luís de Lima Souto, morto com um tiro no coração, em 1968, aos dezoito anos, durante a invasão do restaurante Calabouço, um ponto de encontro de jovens, mantido pelo governo para fornecer refeições a estudantes carentes do Rio de Janeiro. Os estudantes participavam de mais uma das manifestações da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC) contra o aumento abusivo do preço da refeição e pela melhoria e conclusão das obras do restaurante. As paredes ficaram crivadas de balas. Edson Luís tornou-se um mártir do movimento estudantil. O acontecimento impulsionou, em junho daquele ano, a maior manifestação popular até então realizada contra a ditadura. Ao escutar esta música penso em todos os estados que matam para conter a revolta, para conter a luta pela dignidade da vida. Não consigo deixar de pensar no povo palestiniano, não consigo deixar de pensar no genocídio que Israel está a cometer neste preciso momento. Não consigo deixar de pensar em toda a violência exercida em todo o lado contra aqueles que desejam uma vida justa e digna, longe e também aqui, nas nossas ruas. A Barbárie espalhada e escarrapachada por esse mundo fora. 


    Outra música de celebração da resistência é Circo Marimbondo: “Circo Marimbondo, eu cheguei de longe não me atrapaia, vê se não me amola, larga a minha saia, se eu te dar um tombo, tomara que caia”. Caia toda a opressão! Caia! 


    Um álbum de riqueza tão grande não se faz sozinho, claro está, é um trabalho colectivo, de confluência de muitas sensibilidades, de encontro que só enriquece, que faz crescer, porque é assim que deviam ser os encontros, não do saque e da exploração, Promessa de Sol, música de influencia andina, em que contribuem, entre outros, o conjunto musical chileno Água, fala-nos sobre uma consciência cosmológica e ecológica do mundo, de genocídio, de revolta contra as concepções vitimistas que temos sobre as populações indígenas: “vocês me quer belo eu não sou belo mais, me levaram tudo o que um homem precisa ter, me cortaram o corpo à faca sem terminar, me deixando vivo, sem sangue a apodrecer. Você me quer justo e eu não sou justo mais, promessas de sol já não queimam meu coração. Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”


    Em suma, Gerais, é um dos mais belos alguns jamais gravados, na minha opinião, complexo, com um certo hermetismo que o torna tão especial, político, mas poético. E deixa-nos uma mensagem para o futuro, para uma ideia de futuro em movimento, que não pára, como mencionado antes, que se “va enredando, enredando, como en el muro la hiedra y va brotando, brotando, como el musguito en la piedra!” Sejamos essa hera e esse musgo. Agarremo-nos como toda a força à ideia de futuro. Para que o futuro não seja o passado. 

 

Texto publicado originalmente no fanzine Skate Snake Zine #4 em 2024

 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Klein - Lifetime

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  


     Lifetime (editado em 2019) é uma viagem por um dia de Klein, ou pela vida de Klein – que poderia ser a nossa também (?).
 

    E na experiência de Klein podemos reconhecer em parte os traumas da nossa vida, do nosso viver contemporâneo. Com um tom diarístico e com uma carga emocional e confessional muito forte, as música são construídas por camadas, com loops, gravações espontâneas de conversas, de sons quotidianos, de programas de televisão e de outros canais de informação, misturados com teclados, guitarras muito tímidas e a harmónica que Klein, neste álbum, resolveu assumir. Estas falas/vozes murmuram de diferentes espaços e cada espaço é como quarto de onde ecoam fantasmas. Klein apresenta o álbum como uma espécie de puzzle, onde vários fragmentos constroem uma coisa maior, daí fazer sentido ouvir o álbum todo por inteiro, com muita atenção, para que essa viagem pelo lado obscuro da artista seja uma experiência mais completa e complexa. Mas é interessante verificar como qualquer pessoa conseguirá rever-se neste álbum, nesta catarse da indefinição e justaposição de emoções e marasmo do viver contemporâneo. Se o lado A é mais obscuro, o lado B traz alguma luz, uma luz céptica, mas que, ainda assim, ilumina e ajuda a encontrar um qualquer caminho para um mundo onde o sol é a cara amarelada de um bebé que nos conforta e nos dá os bons dias pela televisão – como aquele no mundo alucinado e naif dos Teletubies, talvez. Na música For What Worth, Klein convida Matana Roberts para uma parceria, e aqui o saxofone de Matana traz algum embalo. Ainda que melancólico, este instrumento consegue trazer-nos algum consolo (Matana Roberts é uma das minhas artistas preferidas de sempre, vale a pena uma pesquisa atenta). Também a harmónica de Klein, nos traz algum aconchego, que é colmatado em alguns momentos com cantos religiosos gospel transformados em loop que se convertem num mantra de embalo. A religião e o canto religioso são o background de Klein e neste álbum acabam por ocupar uma espaço importante, sobretudo no lado B, que tem um tom francamente mais espiritual e etéreo. Este é um disco de electrónicas retorcidas e abstractas, demasiado pesado e sombrio para ser um disco Pop, mas com certeza é um disco brilhante de reflexão – ainda que a intuição seja super importante no processo artístico, segundo a própria Klein – sobre o pesadelo da omnipresença e da vivência da cultura Pop em que estamos submergidos, mas que não conseguimos escapar ou renegar. Um bom exercício de catarse, de alguma maneira, de aceitação do trauma, onde as referência mais prosaicas e ordinárias conseguem conviver com os estados emocionais mais espirituais e introspectivos. Não é um objecto bonito, não é nada cute, mas é um objecto poderoso! Talvez seja um disco de empoderamento, de tomada de consciência, de domínio do real. Um regurgitar ácido da contemporaneidade.


    De realçar a capa e contra capa do disco, trabalho do artista Lacra. Esta capa revela um pormenor discreto, que não consigo relegar como secundário que é a bandeira do UK nas calças da figura que posa, este corpo negro, agachado, com mãos e pés de dimensões exageradas, com o cabelo branco entrançado, de olhar (no) vazio, sobre um fundo escuro com aquilo que se assemelha a um oceano por baixo. Parece coisa pouca, mas a mim surge como uma referência importante ao contexto soció-cultural de Klein. Afinal, talvez este não seja um disco universalista sobre o transe de alienação colectiva. Há outra camada, que está logo na capa, a primeira coisa que se dá a ver e é um quase manifesto escarrapachado – sugere-se aqui uma aproximação ao conceito desenvolvido, entre outros, por Aimé Césaire que é afirmação de uma visão do mundo através da negritude da artista: esta música tem o poder de tocar a todos, claro, mas este acto criativo existe e dá-se a conhecer segundo a consciência critica da experiência individual e colectiva da artista, uma jovem filha de pais imigrantes nigerianos a viver em Inglaterra.

 

 

Texto publicado originalmente no fanzine Skate Snake Zine #2 em 2021


domingo, 3 de dezembro de 2023

6º episódio

Né Ladeiras, Tu e eu, Sonho Azul, Valentim De Carvalho, 1983
Patrice Rushen, Remind me, Straight form the heart, Elektra Records, 1982 
Sea Urchin, Asa (Tahtib Tehbat), Tahtib Tehbat, Bokeh Versions, 2019 
U-She + Holger Kzukay, Secret Remix, Time and Tide, Dignose, 2001 
Aphex Twin, Pulsewith, Selected Ambient Works 85-92, Apollo, 1992 
Yu Su, Melaleuca, Yellow River Blue, Bié Records 2021 
Babyfather, Meditation ft. Arca, BBF Hosted by DJ Escrow, Hyperdub, 2016 
Arthur Russell, Let's Go Swimming (Arthur Gibbons Mix), The World of Arthur Russel, Soul Jazz Records, 2003 
DJ Maboku, Instrumental Pe, Blacksea Não Maya / Piquenos DJs Do Guetto, Príncipe, 2013 
Cabaret Voltaire, Diskono, The Crackdown, Virgin, Some Bizarre, 1983 
Frankie Knuckles ft. Shelton Becton, It's Hard Sometime (The Eclipse), Virgin, 1991
Dream 2 Science, Mystery of Love, Dream 2 Science, Power Move Records, 1990
Nídia, Pose, 95 Mindjeres, Príncipe, 2023
Klaus Kruger, Latin neighbors, Advanced Dance, Early Sounds Recordings, 2018
700 Bliss, Anthology, Nothing to Declare, Hyperdub, 2022
Boo Williams, Echoes Of The Dance, Natural Service EP, Chiwax, 2023
Mike Dunn aka MD III, Face the Nation, Face the Nation ep, Underground, 1988
DJ Danifox, Chopper, Ansiedade, Príncipe, 2023
Trevor Hartley, It Must Be Love,It must be Love, Fu Manchu, 1987, retirado da compilação Harmony, Melody & Style - Lovers Rock In The Uk 1975 - 1992, Soul Jazz Records, 2012

quarta-feira, 18 de março de 2020

5º episódio




Penny Rimbaud, Oh America, lido por John Sharian, com The English Chamber Choir interpretando Agnus Dei de Samuel Barber, Exitstencil, 2002
Shabaaz Palaces, That’s How City Life Goes, Quazarz: Born on a Gangster Star, Sub Pop, 2017
The Residents, Ingrid’s Oily Tongue, The Animal Lover, Mute, 2005
Priscilla Ermel, Campo de Sonhos, Campo de Sonhos, Eldorado, 1992, Origens da Luz, Music From Memory, 2020
Geinoh Yamashirogumi, Keneda, Akira Original Soundtrack, Victor, 1988
Princess Nokia, Brujas, 1992, auto-editado, 2016, Rough Trade, 2017
Anti Social Workers and The Mad Professor, Who’s Watching You?, Punky Reggae Party, Ariwa, 1983
Michael Hurley & Pals, Be Kind To Me, Armchair Boogie, Warner Bros. Records, Raccoon, 1971
Julia Holter, The Falling Age, Tragedy, Leaving Records, 2011
Aldina Duarte, Flor do Cardo, Crua, EMI Music Portugal, 2006
Maria Reis, Soror Mariana, Chove Na Sala, Água Nos Olhos, Cafetra Records, 2019
Archie Shepp e Jeanne Lee, There Is A Balm In Gilead, Blasé, BYG Records, 1969

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Gilberto Gil - REFAVELA

refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços, o povo chocolate e mel
refavela, a fraqueza do poeta; o que ele revela, o que ele fala, o que ele vê.
(1)





Encontrei este álbum por obra dos algoritmos do youtube (às vezes há algoritmos que acertam). Logo, na primeira escuta fiquei estupefacto, sim a palavra é essa porque me senti mesmo envolvido pela música, tão aberta e contagiante e tão poderosa politicamente que fiquei pasmado, magnetizado.
Mais tarde tive a sorte de encontrar o disco e poder adquiri-lo. A capa também ela me envolveu, o retrato de Gilberto Gil que se oferece à contemplação: um rosto bonito e orgulhoso mas contemplativo, os olhos semi-serrados parecem fitar uma luz rasa, um horizonte, será o futuro?
Este disco foi editado em 1977, no mesmo ano em que na Inglaterra os os punks gritavam que não havia futuro e que isto estava tudo condenado, do outro lado do atlântico e mais a Sul, Gil tomava consciência da importância de afirmar a sua negritude e de projectá-la de uma perspectiva crítica no futuro. Nesse ano Gilberto Gil participou do 2º Festac — Festival Mundial de Arte e Cultura Negra que foi um grande evento realizado em Lagos, na Nigéria, e que reuniu artistas negros e da diáspora negra. Estavam representados países da África e comunidades afro-descendentes, da América do Sul ao Caribe, passando pelos EUA e Europa. Este festival pretendia celebrar a cultura negra através da difusão e diálogo entre várias culturas num misto de movimento Pan-Africano  politicamente engajado mas que ao mesmo tempo foi usado pelo governo para reforçar o poder na própria Nigéria. Fela Kuti afastou-se (ou foi afastado) do Festival e aparentemente teve até problemas com as autoridades (2), o que não fez com que Gilberto Gil deixasse de frequentar o círculo deste músico mundialmente conhecido. A influência deste encontro foi enorme, Gil nessa altura tinha 34 anos. O nome do disco foi pensado para fazer parte de um trilogia, precedido por Refazenda de 1975 de temática mais rural e Realce, de 1979, que é o disco que encerra este trio. Refavela então é um disco que fala dessa tomada de consciência aberta e plena da negritude brasileira, o título provem directamente da experiência na Nigéria, como comenta o artista: (…)reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas (3). Na letra da Música Refavela essa ideia está presente: O ambiente / Efervescente / De uma cidade a cintilar / A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Pr’um bloco do BNH [Banco Nacional da Habitação] (4). No interior do invólucro do disco podemos ver várias fotografias tiradas na Nigéria, Caetano Veloso incluído, assim como a comitiva brasileira e aspectos da vida quotidiana da capital e do Festival. O que Gilberto Gil neste disco pretendeu, com todas as influências que foi beber a Lagos, foi redireccionar essa energia para as raízes da cultura Africana no Brasil, pegando nos ritmos do Samba por exemplo, usando inclusivamente temas para blocos de escolas de Samba como a Ilê Aiyê (expressão que vem da língua Yoruba: ilê, ‘patria' e aiyê, 'para sempre' ou 'em eternidade’) (5). Somo crioulo doido / somo bem legal / Temo cabelo duro / Somo bleque pau (6) (em outras versões desta musica que podemos encontrar na internet, Bleque pau aparece como Black Power, tendo optado Gilberto Gil por adaptar a escrita à fonética da língua), aproveitando estes versos da música escrita por Paulinho Camafeu, Gil partindo da cadência sonora das palavras, faz uma incursão experimental, um ensaio talvez inconscinete e involuntário do que seria mais tarde o Hiphop. Ou seja, Gilberto Gil projecta novas sonoridades de influência Africana e faz surgir outras possibilidades musicais dessa mistura.
Apesar de se centrar em música de influência Africana directa, este é um álbum muito eclético musicalmente. No tema Balafon, Gilberto enumera as várias maneiras de referir a esse instrumento primordial usando esse instrumento tão importante em tantas culturas como possibilidade e símbolo de encontro e co-existência, explodindo a música em guitarras que não nos deixa resistir ao contágio de alegria e celebração abraçando o Afrobeat que recolheu na Nigéria. Cada vez que ouço esse tema não consigo deixar de sentir um insuflar de boa energia.
Na música No norte da Saudade também se abre espaço para sonoridades reagge e afro-caribenhas. O disco não se centra todo na temática da cultura negra, músicas como Nova Era por exemplo, falam-nos do questionar da ideia de tempo, da construção que é a História, da cristalização das ideias e ideais. Mas também O melhor lugar do mundo que nos vem recordar que devemos aproveitar todos os momentos e tirar partido do que de belo o instante contém. Mas apesar de serem letras mais intimistas nem por isso se desligam de todas as outras mais politizadas, aliás parece-me que as complementam e reforçam, só estas de foro mais íntimo fortalecem as outras mais compulsivas, lhes permitem ter espaço para reverberar em nós. Uma verdadeira revolução na consciência do colectivo não se fará sem que individualmente estejamos preparados para essa tomada (e conversão) do poder numa outra coisa que não o vigente.

Este texto foi escrito algum tempo antes de saber se quer que Gilbero Gil viria apresentar o disco num concerto em Belém, junto ao Tejo. Foi um momento mágico de entrega total e comunhão de todos os presentes. Gilberto Gil fez um comentário muito interessante, curto e oportuno: os barcos saíram em direcção ao Brasil à 500 anos daquele mesmo sítio onde naquela noite estava a ser apresentado este disco que fala de toda a construção na identidade afro-brasileira que é resultado directo das políticas económicas e sociais do Portugal daquela época. Achei significativo, olhar para os lugares onde se constrói a História e as estórias.

Voltando ao disco, o prefixo Re, em 1977 pretendia falar dos problemas raciais da sociedade brasileira. O título Refavela, explicitava a construção de novas Favelas mascaradas de melhoramento da vida dos brasileiros. Este é um problema que não foi resolvido, adensou-se, e não só no Brasil, o racismo prevalece encapuzado, se não é oficial, parece. Este disco infelizmente permanece actualíssimo e este ano em que Marielle Franco foi assassinada por representar um esforço na denúncia dos abusos da polícia militar nas intervenções nas Favelas do Rio de Janeiro é mais uma prova disso. A política do governo brasileiro cada vez está mais musculada e assenta num obscurantismo medieval que favorece os corruptos e perpetua a estratificação social. Espero com ansiedade pelos resultados das eleições no Brasil de dia 7 de Outubro, espero que a direita mais reaccionária seja arrasada! Tem de ser. Este disco apesar de ser urgente em 1977 e de infelizmente continuar a ser, prova que é a arte e são discos como este que nos dão alguma esperança e sentimento de resistência. Aconselho vivamente a sua escuta.


(Bolsonaro ganhou, e tudo o que parecia impossível aconteceu e é medonho o que tem acontecido de lá para esta data)

Texto publicado Originalmente no fanzine Cleópatra #11 em Outubro de 2018


1 ver disco
2 https://africaemquestao.wordpress.com/2012/07/27/trabalho-sobre-o-festival-negro-e-africano-das-artes-e-da-cultura-festac/
3 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=714&letra
4 ver disco
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Aiy%C3%AA
6 ver disco

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Flux of Pink Indians: A merda dos caralhos tratam-nos como conas

Flux of Pink Indians . The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks / The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts . Spiderleg Tapes . 1984  A merda dos  caralhos tratam-nos como conas , É uma muito má e pouco polida tradução do título deste duplo álbum dos Flux of Pink Indians (FOPI), mas pode ser a que melhor encontro para transmitir a ideia do disco. Aqui, a redução dos géneros aos orgãos genitais (como é óbvio sabemos que esta questão é bem mais complexa que uma simples dicotomia e entendimento binário do géneros mas como falamos deste disco em específico vamos tentar ter uma abordagem mais simplificada e focarmo-nos nas disparidades e abusos sobre as mulheres e os seus corpos e sobre a cultura falocentrica e bélica que daí provem, não excluíndo que o propósito do álbum seja uma discussão mais alargada dentro dessas mesmas questões de género). Uma cona e um caralho em oposição, em confronto? Este duplo álbum de 1984 tem dois títulos, o disco 1 como The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks e o 2 como The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts. Quando saiu foi banido pelos distribuidores devido ao título e capa sexualmente explícitos, cópias foram apreendidas pela polícia, uma loja de discos foi acusada de exibir “Publicações com artigos obscenos com vista a obter lucro” (1). Afinal não era só na Jugoslávia e na RDA, por exemplo, que os punks eram intimados e controlados pelo estado (não estou a fazer apologias partidárias, apenas a esclarecer que também em países “democráticos” há controlo dos nossos movimentos e acções). As letras deste álbum são na sua maioria sobre essa mesma obscenidade que é a violência entre homens e mulheres baseadas na experiência de um membro da banda, que foi abusada sexualmente. Este é um álbum que nos fala também sobre outros assuntos nomeadamente a crítica o movimento punk, a guerra, o capitalismo, é um disco que em suma se encaixa perfeitamente no tipologia ideológica de uma banda Anarco-punk. Crítica e auto-crítica (que é sempre bem vinda). A primeira música, Punk, não se demora muito em críticas elaboradas à cena punk como os Crass fizeram, aqui apenas há a repetição da palavra Punk e suck, no final da música ouvimos o grande arroto. Esta é uma das músicas mais curtas do álbum, 1’30’’. Coisa atípica para uma banda punk, o resto das músicas alongam-se por vários minutos, até porque não há interrupções, o que ouvimos é quase uma cacofonia contínua. Esta primeira música anuncia aquilo que vamos ouvir no resto do álbum, velocidade e sujidade, muita sujidade. Se a bateria segue muitas vezes a norma daquela que é a bateria do punk, os FOPI acrescentam-lhe distorção em doses quase intoleráveis. Aliás, inaudibilidade é uma palavra que poderia definir este disco. A sujidade é tanta que parece carregada de matéria corrosiva, ácida, chega a parecer que as fitas de gravação foram queimadas  com ácido para obter essa corrosividade, esse desgaste. Mas o disco não se faz só de distorção embora seja essa grande bebedeira catártica, conseguida através do desgaste sonoro, que prevalece. Noise, noise e mais noise. Mas não temos aqui um disco de Harsh noise, lá pelo meio conseguimos até distinguir um baixo que às vezes faz até lembrar uns Joy Division menos polidos ou uns A Certain Ratio ao improviso aquando dos trompetes que se escutam aqui e ali. Colagens que se atropelam, interrompem-se músicas, para voltar ao que ouvíamos anteriormente de forma aparentemente abrupta, mas só aparentemente, há aqui um trabalho meticuloso de colagem à pinça que convém não esquecer ou menosprezar. É bom encontrar bandas que não se fecham sonoramente, abolindo o sectarismo musical. Esta banda conseguiu ter um muito alargado espectro de sonoridades, mesmo dentro de um único álbum. E ao longo da sua carreira conseguiram abraçar, o punk, a música industrial, o Dub, a poesia falada, gritada e cantada. Este The fucking cunts treat us like pricks faz uso de colagens de sons retirados de programas televisivos, fragmentos de conversas e loops que ajudam a alargar conceptualmente o disco, porque a própria música já não é produzida apenas por instrumentos musicais, e isso culminou no disco posterior Uncarved block que é um álbum fumegante, carregado de ecos e delays, uma bela peça de Dub dançante e ao mesmo tempo introspectivo, esse é um álbum parece ter sido todo feito em estúdio. Quer me parecer que o que pretendiam com o Fucking cunts era fazer uma peça sonora para se ouvir de seguida do princípio ao fim, não um disco com canções isoladas. 
Os Crass também ensaiaram essa ideia dentro das manifestações culturais proveniente do punk por isso é que ambas as bandas não tiveram sucesso comercial, como por exemplo os Sex Pistols ou os the Clash, foram até denunciantes da relação promiscua que as segundas tiveram com grandes companhias discográficas, questionando afinal para onde se dirigia o movimento punk. Ou seja, a música aqui é entendida como uma uma experiência estética e política proporcionada pelo som, uma ideia que se quer transmitir não apenas com ritmos construídos com instrumentos tradicionalmente usados em bandas pop-rock com uma estrutura formal de cantiga, mas com sons provenientes de outras fontes, alterados e mediados posteriormente, e isso é muito importante para quebrar barreiras naquilo que foi e ainda prevalece como uma ideia feita do que é a música punk e em última instância aquilo que se pensa ser a proposta do movimento punk. Punk não é só aprender 3 acordes e fazer uma banda, há de ser fazer à margem, questionando o centro. Politicamente ou artisticamente. Os Crass, por exemplo, fizeram-no com astúcia aproximando-se do centro (mesmo que em permanente crítica e auto-crítica e quando digo que os Crass se aproximaram do centro não quero dizer que tenham feito música pop para se relacionar com as pessoas, refiro-me por exemplo aos constantes actos de sabotagem à industria dos media ou à montagem sonora que fizeram em que simularam uma conversa entre Tatcher e Reagan em que Reagan em plena guerra fria dizia que ía usar a Europa como área de testes com mísseis nucleares (2). Essa fita foi distribuída com o máximo sigilo e anonimato mas mesmo assim foram descobertos, assediados, intimados  e controlados pela ScottLand Yard, vendo-se envolvidos num verdadeiro caso de contra-espionagem, em que se chegou a sugerir que teria sido o KGB a produzir essa fita com vista a acelerar as tensões entres os estados envolvidos na Guerra Fria. Esta é a aproximação do centro que referia, é estar no centro da mediatização, da atenção das instituições de controlo e espectáculo). Assim que os Crass se aperceberam de estarem a acercar-se demasiado do epicentro, devido a esse constante controlo e à paranóia que dele foi consequência, implodiram. Há várias questões que se levantam como por exemplo: até que ponto o pacifismo preconizado pelos Crass e também pelos Flux of Pink Indians é compatível com a agressão física, como é que o pacifismo pode ser arma de defesa? Não sei como estes projectos musicais, artísticos e políticos podem, a determinada altura, não reagir a provocações e intimações de violência física directa, mas também à violência resultante das políticas sociais de um estado, que pode ser  muitas vezes física mas sobretudo emocional; ou o que fazer com o poder que se obtém da contestação ao próprio poder? Tenho uma enorme admiração artística e política por estes projectos, mas não deixo de levantar estas questões, como os próprios fizeram, porque são de facto tão importantes. É que na verdade a questão e a resposta são o próprio percurso destas bandas: recusa do poder, contestação à margem, aquisição involuntária de poder, implosão como reacção e incapacidade de lidar com esse poder adquirido. Pode perceber-se o paradoxo em que se encontram os críticos que o fazem fora do sistema, se as bases que sustentam um sistema social não tiverem acesso à crítica a esse sistema, se não houver um trabalho de implementar e de se relacionar com essas bases, que mudança existirá e como? Quando me refiro à crítica, acho que pode ser também o fazer Arte e a experiência artística resultante do acesso à Arte. Não estou a defender uma espécie de messianismo, mas é urgente perceber que a distância entre a crítica e aqueles que de alguma maneira sustentam, ainda que inconscientemente, um sistema que os oprime, eventualmente não trará grandes resultados. Embora este próprio texto não passe de mais um exemplo desse desfasamento entre eu e os meus tios, por exemplo. Como é que se faz esse trabalho de desacreditação deste sistema tão complexo de forma congruente, verdadeiramente contestatária, inequívoca e sem fazer concessões, sem entrar no espaço mediatizado que transforma tudo em espectáculo? Não sei bem (mas tenho algumas parcas luzes que agora vou guardar para mim…). 
Voltemos ao disco dos FOPI. Apesar de ser um álbum que pretendia expor e denunciar a misoginia presente na Inglaterra e por todo o mundo nos anos 80, havia, por parte dos membros da banda a ideia de que tudo isto é um problema mais complexo e que o resultado desse sistema patriarcal é proveniente de um estado que promove a guerra, a manipulação mediática da informação, o fanatismo religioso, o capitalismo, etc. De facto é central a temática do abuso sexual e da violência sobre as mulheres. Há momentos no disco em que se sente uma náusea, tanto pela sonoridade agressiva, como pelas descrições horríveis de casos de violações e da própria exposição da vítima destas situações perante a polícia e tribunais e da acusação velada que muitas vezes pode saí resultar. Isto deve ser de facto traumático. Muito triste mesmo. Mas há também referências à guerra na Irlanda, à guerra nas Ilhas Maldivas, ao jornal Sun que estupidificava e continua a estupidificar os seus leitores, à guerra nuclear, à sociedade de espectáculo, à irresponsabilidade ecológica  e social dos governos, entre outros assuntos abordados neste disco de maneira bastante dissecada e explícita. É de louvar a percepção de que os problemas que envolvem o patriarcado e a violência sobre as mulheres faz parte de uma teia complicada, um emaranhado de relações económicas e sociais que nos aliena das causas dessa violência. Triste é perceber mais uma vez que todos estes problemas se intensificaram, forma-se um novelo que desvirtua os vínculos sociais e económicos e tudo ficou ainda mais confuso e denso e que é cada vez mais difícil distinguir onde está o alvo e para onde dirigir toda esta raiva, sendo sempre mais fácil culpar as camadas populacionais mais desprotegidas, bater no mais fraco. O Big Brother, afinal vivemo-lo “também” nos estados “democráticos”. A informação é cada vez mais difusa, embora tenhamos a sensação que nunca tivemos o acesso a ela tão facilitado. Álbuns assim ajudam-nos a destilar, a exorcizar e, esperançosamente, a reagir às agressões resultantes destes tempos sombrios em que vivemos.


Publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Outubro de 2018 e posteriormente adapatado para Banda Desenhada na Revista Decadente e Pentângulo #3





2 https://www.youtube.com/watch?v=QmfLP1IOip8
  

domingo, 13 de outubro de 2019

4º episódio


Beverly Glenn-Copeland, Ever New, … Keyboard Fantasies… , Atlast Records, 1986
Lou Reed, Families, The Bells, Arista, 1979
Chance, Samba de morro, retirado da compilação The Sexual Life Of The Savages, Soul Jazz Records, 2005
Pekka Airaksinen, Sukirti, Buddhas Of Golden Light, O Records, 1984
Ondness, Torre, Not Really Now Not Any More, Holuzam, 2019
K.U.K.L., Moonbath, The Eye, Crass Records, 1984
Midori Takada, Tromp-l’oeil, Through The Looking Glass, RCA Red Seal, 1983
Nicole Mitchell, Cave of Forgotten Spring, Engraved in the Wind, Rogueart, 2013
Maxxxbass, Untitled (track 6), Gone Fishing, L.I.E.S (Long Island Electrical Systems), 2018
The Space Lady, Major Tom, The Space Lady Greatests Hits, Night School, 2013
David Bowie, Heathen (The Rays), Heathen, Columbia, 2002
Loose Joints (Arthur Russel/Steven D’Acquisto), Is It All Over My Face (Larry Levan Mix), retirado da compilação The World Of Arthur Russell, Soul Jazz Records, 2004
Meredith Monk, Traveling, Dolmen Music, ECM Records, 1981
Joni Mitchell, Boths Sides, Now, Clouds, Reprise Records, 1969

terça-feira, 3 de abril de 2018

3º episódio

Pixies . Ana, Bossanova, 4AD, 1990
Alice Coltrane . Keshava Murahara, Divine Songs, Avatar Book Institute, 1987
Laibach, Across the universe, Let it be, Mute, 1988, tema original dos Beatles
Thor & friends . Mouse Mouse, The Subversive Nature of Kindness, LM Dupli-Cation, 2017
The Durruti Column. For Belgian Friend, LC, 1980, retirado da reedição da Factory Benelux, 2016
Grandmaster Flash & The Furious Five . The Message, Grandmaster Flash & The Furious Five, Sugar Hill Records, 1983
Djamal . Revolução (Agora!), Abram Espaço, BMG Portugal, 1997
Chavela Vargas . Somos, Somos, WEA, 1996
Niña de la puebla . Los Campallineros, gravação e ano incertos, retirado da compilação The Essential Guide, Music Brokers, 2007
Pixies . Evil Hearted you, Planet Of Sound, 4AD, 1991, retirado da compilação Complete ‘B’ sides, 4AD, 2001, tema original dos Yardbirds cantado em inglês
Iggy Pop . Long Distance, Avenue B, Virgin, 1999
Sallim . As minhas gavetas, Isula, Cafetra Records, 2016
Gal Costa . Passarinho, Índia, Philips, 1973
Sade . Smooth Operator, Diamond Life, EPIC, 1984
Paulino Semedo e Vicente Alvarega avec la participation du groupe Nhakus . Noa Presta, edição e data desconhecidas
Marku Ribas . Colcha de retalhos, Barrankeiro, Philips, 1978
Jun Togawa . ある晴れた日, Kyokuto Ian Shoka, Yen Records,1985
Prince and the Revolution . Purple Rain, Purple Rain, Warner Bros Records, 1984

quarta-feira, 7 de março de 2018

2º episódio


GAC . Cantiga sem maneiras, Pois Canté, Vozes Na Luta, 1976 
Popol Vuh . Hosianna Mantra, Hossiana Mantra, Pilz, 1972 
Fausto . Lembra-me um sonho lindo, Por Este Rio Acima, Triângulo, 1982 
Grouper . Fishing Bird (Empty Gutted In The Evening Breeze), Dragging A Dead Deer Up A Hill, Type, 2008, retirado da reedição da Kranky de 2013 
Tim maia . Preciso aprender a ser só, Tim Maia, Polydor, 1971 
Neil Young . On the beach, On the beach, Reprise Records, 1974 
Vincent Gallo . The way it is waltz, Recordings Of Music For Film, Warp Records, 2002 
Kuniyuki Takahashi . Drawing Seeds, Early Tape Works (1986 - 1993) Vol. 1, Music From Memory, 2018 
Laurel Halo . Airsick, Quarantine, Hyperdub, 2012 
Louisa Mark . Caught you in a lie, Caught you in a lie, Safari Records, 1975 retirado da compilação Harmony, Melody & Style (Lovers Rock In The UK 1975-1992), Soul Jazz Records, 2012 
David Bowie . It’s gonna be me, 1975 retirado de Young Americans, Rykodisc / EMI, 1991 
Nico . Afraid, Desertshore, Reprise Records, 1970 
NiedoWierzanie . Illusions, Tous les chemins de mon pays, URUBU TAPES, 2018 
Norberto Lobo . Figueira, Muxama, Three:four Records, 2016 
Travadinha . Blimundo, Feiticeira de cor morena, Associação De Amizade Portugal - Cabo Verde / Associação Caboverdeana, 1986 
Von calhau! . O Caminho Da Cabra, Quadrologia Pentacónica, Rafflesia, 2011

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

The Residents: antropofagia nos Estados Unidos em 76

Ao ouvir o disco The Third Reich’N Roll dos The Residents, recordei-me do Manifesto Antropofágico de Oswald, dos rituais antropofágicos e da ideia de antropofagia (do grego anthropos, homem e phagein, comer) que é a ingestão de carne humana em certas tribos, não por necessidades de nutrição, antes para absorção de poderes e atributos daquele que era ingerido, na maioria dos casos este acto era um ritual mágico para prestar homenagem a alguém e adquirir as suas características. O Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia em 1928, escrito por Oswald de Andrade, alude a uma ideia de ingestão da cultura europeia que foi e é estabelecida como progressista, iluminada e iluminante e que foi imposta às populações indígenas do Brasil, que deveria ser regurgitada num outro entendimento da identidade brasileira enquanto cultura construída a partir da sua real entidade pré-colonial em relação com a cultura ocidental industrializada. Tal como o índio Tupi, a cultura brasileira deveria ingerir a europeia resultando dessa digestão uma espécie de absorção das características positivas da Europa colonizadora pelo corpo cultural brasileiro. O índio Tupi comeria o seu inimigo para ficar mais forte. O que defendia a utopia antropofágica modernista era que dessa ingestão resultaria uma verdadeira emancipação da cultura brasileira, afastada da burguesa e patriarcal europeização ¶ Esta corrente modernista brasileira defendia que o Brasil deveria iniciar uma revolução no entendimento da sua relação cultural (e política) com o peso do violento passado de um território colonizado por Portugal e pela Europa enquanto conjunto de estados imperialistas, que enraizaram à força a sua cultura ao longo dos séculos como a única e universal, asfixiando e demonizando as estruturas culturais, politicas e sociais das populações donas desses territórios ¶ Este disco dos The Residents fez-me pensar nessa ideia de antropofagia ¶ Pode-se pensar nos The Residents como os antropófagos dos EUA, neste álbum ingerem cerca de trinta músicas do top 40 americano dos anos 60 e regurgitam duas suítes, Swastikas On Parade e Hitler Was a Vegetarian.
O que os The Residents propunham em 1976, com este disco lançado pela Ralph Records era uma ideia antropofágica de intervencionar o Top 40 dos E.U.A e o resultado foi este álbum. (Double shot) Of my baby’s love dos americanos The Swinging Medallions, é uma música solarengamente adolescente. Woke up this morning, my head was so bad/ The worst hangover that I ever had, no disco dos The Residents é cantado por um coro ressacado, o enjoo é tão enfatizado que a sensação é a de uma grande vertigem, uma insuportável dor de cabeça, um arrastado sofrimento. A náusea e decadência, são aliás sentimentos que nos vão acompanhando ao longo de todo o disco. Na versão de Light my fire dos The Doors há a repetição do refrão dessa canção por uma voz masculina completamente decrépita, com um acompanhamento musical característico da imagética relacionada aos circos decadentes. Qualquer sexualidade que pudesse emanar da voz e do corpo de Jim Morrison é aqui aniquilada, temos antes um homem caduco que num tom superior ordena Come on baby light my fire, come on baby light my fire, mas que na verdade o que diz, soa mais a uma imploração vomitada e agressiva, de quem, numa última tentativa de provar as suas faculdades sexuais, o que acaba por nos mostrar é a sua humilhante situação de perda da sexualidade. Faz-nos imaginar um corpo arruinado e rejeitado. Se havia sensualidade nessa música os The Residents dão-nos bizarria e fealdade. Também a música, In a Gadda da Vida dos Iron Butterfly, uma banda hard-rock psicadélica, é transformada em música punk, e o que o punk tem de rude e áspero está nesta versão, a voz tem o atrito, a bateria tem a velocidade e precisão, quase roça o hard-core, o crust, ou alguns desvios musicalmente ainda mais agressivos da música punk. O que fica é de novo o enjoo, a decrepitude que percorre as duas músicas que compõem o álbum. A ligar todos os trechos de músicas está um emaranhado de tecidos sonoros, através do qual se ligam todas as versões das músicas que foram alvo de apropriação por parte dos The Residents, contribuindo esses interlúdios para que o disco soe familiar e totalmente alien ao mesmo tempo (1) . Esses arranjos, sejam eles samples de metralhadoras, acidentes de automóvel, improvisações jazz caóticas que podem fazer lembrar Sun Ra ou o uso de instrumentos musicais de baixa qualidade, são como delicadas membranas que unem as músicas intervencionadas (destruídas) pelos The Residents. Mesmo passados cerca de 35 anos, algumas dessas intervenções podem fazer-nos lembrar algumas práticas na música exploratória contemporânea como são, por exemplo os Hype Williams, que para além de recorrerem a samples de sons das mais variadas situações quotidianas e da cultura pop, como jogos de consolas fazem, também eles, uma apropriação de outras músicas, distorcendo-as e decompondo-as para a criação de novas, e também nos seus álbuns (principalmente nos primeiros) há um arrastamento, quase uma suspensão do tempo que vai decorrendo lentamente, mas em vez da cacofonia agressiva do The Third Reich’N Roll ainda que se sinta um arrastamento, nos Hype Williams há uma óbvia ambiência fumegante, quase adocicada onde são reciclados os anos 80, 90 e o advento da cultura pop a uma escala global associada a essas décadas. Parece-me que os The Residents abriram as portas a novas sonoridades, recorrendo ao uso da música popular parodiando-a, destruindo-a regurgitando uma nova maneira de pensar a música fora dos círculos ligados à teorização musical. Sempre houve nos The Residents uma vontade de fazer música sobre música (2) , e com essa metalinguagem pavimentaram-se novos caminhos em direcção a um entendimento contemporâneo da cultura, há espaço para a auto-referencialidade, e também para uma desejável auto-crítica. Mas, e é aqui que julgo que os The Residents são importantes, apesar de lidarem com assuntos sobre a ideia de música como algo que pode e deve questionar os seus limites, eles fizeram isso com a música proveniente da cultura popular e com humor, desenvolvendo as suas investigações musicais usando os modelos que adoptaram dessa mesma cultura de massas, e a sua criação foi mostrada não apenas dentro dos círculos intelectualizados, mas nos circuitos da cultura popular, replicando essas estratégias de marketing e divulgação, mas por causa da sua criatividade, espírito vanguardista de não alinhamento e principalmente, por causa da sua música difícil, diferenciaram-se dos ícones Pop comuns. São exemplos da replicação das estruturas basilares da Pop os concertos públicos, os discos, a criação de uma identidade/marca que os promovia e sobretudo a invenção de quatro personagens, à imagem de várias bandas da cultura popular, como os Beatles ou os Rolling Stones (sempre na mira dos The Residents, entre outros) que os admiradores podem idolatrar, sendo que os The Residents trocaram um corpo por um olho gigante na cabeça e por um smoking, imagem que foi sendo alterada ao longo do tempo, e, julgo eu, foi esta ausência de um corpo visível e reconhecível, o anonimato dos artistas que permitiu que os The Residents pudessem continuar ainda hoje com o seu trabalho, porque de facto qualquer pessoa pode tomar o lugar do anterior nesta banda, e nenhum posto é irrevogável, sendo assim o projecto (colectivo?) pode continuar. Este disco, apresenta-se também como uma clara crítica à subversão da revolta que se profetizou com o aparecimento do rock’n roll, o sistema absorveu a juventude e integrou-a, juntamente com as suas manifestações culturais, num sistema capitalista pasmacento e confortável, encabeçado por algumas solarengas bandas de surf e garage-rock. 



Podemos ver na capa deste disco o cartoon Dick Clark vestido com uma farda nazi e jovens casais com a cara de Adolf Hitler a dançar em seu redor. Uma imagem cómica do controlo das massas pela música convencionada e dentro das regras. Uma ilustração maquiavélica mas bem humorada do totalitarismo cultural. Se ouvíssemos de seguida as músicas originais que foram torcidadas pelos The Residents neste disco, provavelmente teríamos uma festa com música dos anos 60 divertida, que ainda hoje nos diverte, mas o que eles fizeram foi pegar nessa ingénua vontade de aparentemente viver sem preocupações, fomentada nos EUA (apesar da guerra do Vietnam e dos graves conflitos sociais internos, como a segregação racial e as diferenças abismais entre classes por exemplo) e transformar tudo isso num avassalador caos musical obscuro e indisposto. Exactamente por todas estas questões ligadas à crítica da cultura de massas e aos aspectos socio-políticos inerentes, juntando-lhes a complexidade rítmica e de texturas sonoras faz dos The Residents e deste disco, The Third Reich’N Roll, uma obra que merece ser ouvida e compreendida com toda a atenção e seriedade, apesar de toda a carga cómica e satírica que sempre foi constante neste projecto.



publicado originalmente na publicação O Príncipio em Novembro de 2013

1 POUNCEY, Edwin, The Primer: The Residents in The Wire, nº 204, Londres, Fevereiro 2001, p. 45 
2 http://www.residents.com/historical4/classic/page11/page11.php