quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Klein - Lifetime

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 Lifetime (editado em 2019) é uma viagem por um dia de Klein, ou pela vida de Klein – que poderia ser a nossa também (?).
 

E na experiência de Klein podemos reconhecer em parte os traumas da nossa vida, do nosso viver contemporâneo. Com um tom diarístico e com uma carga emocional e confessional muito forte, as música são construídas por camadas, com loops, gravações espontâneas de conversas, de sons quotidianos, de programas de televisão e de outros canais de informação, misturados com teclados, guitarras muito tímidas e a harmónica que Klein, neste álbum, resolveu assumir. Estas falas/vozes murmuram de diferentes espaços e cada espaço é como quarto de onde ecoam fantasmas. Klein apresenta o álbum como uma espécie de puzzle, onde vários fragmentos constroem uma coisa maior, daí fazer sentido ouvir o álbum todo por inteiro, com muita atenção, para que essa viagem pelo lado obscuro da artista seja uma experiência mais completa e complexa. Mas é interessante verificar como qualquer pessoa conseguirá rever-se neste álbum, nesta catarse da indefinição e justaposição de emoções e marasmo do viver contemporâneo. Se o lado A é mais obscuro, o lado B traz alguma luz, uma luz céptica, mas que, ainda assim, ilumina e ajuda a encontrar um qualquer caminho para um mundo onde o sol é a cara amarelada de um bebé que nos conforta e nos dá os bons dias pela televisão – como aquele no mundo alucinado e naif dos Teletubies, talvez. Na música For What Worth, Klein convida Matana Roberts para uma parceria, e aqui o saxofone de Matana traz algum embalo. Ainda que melancólico, este instrumento consegue trazer-nos algum consolo (Matana Roberts é uma das minhas artistas preferidas de sempre, vale a pena uma pesquisa atenta). Também a harmónica de Klein, nos traz algum aconchego, que é colmatado em alguns momentos com cantos religiosos gospel transformados em loop que se convertem num mantra de embalo. A religião e o canto religioso são o background de Klein e neste álbum acabam por ocupar uma espaço importante, sobretudo no lado B, que tem um tom francamente mais espiritual e etéreo. Este é um disco de electrónicas retorcidas e abstractas, demasiado pesado e sombrio para ser um disco Pop, mas com certeza é um disco brilhante de reflexão – ainda que a intuição seja super importante no processo artístico, segundo a própria Klein – sobre o pesadelo da omnipresença e da vivência da cultura Pop em que estamos submergidos, mas que não conseguimos escapar ou renegar. Um bom exercício de catarse, de alguma maneira, de aceitação do trauma, onde as referência mais prosaicas e ordinárias conseguem conviver com os estados emocionais mais espirituais e introspectivos. Não é um objecto bonito, não é nada cute, mas é um objecto poderoso! Talvez seja um disco de empoderamento, de tomada de consciência, de domínio do real. Um regurgitar ácido da contemporaneidade.


De realçar a capa e contra capa do disco, trabalho do artista Lacra. Esta capa revela um pormenor discreto, que não consigo relegar como secundário que é a bandeira do UK nas calças da figura que posa, este corpo negro, agachado, com mãos e pés de dimensões exageradas, com o cabelo branco entrançado, de olhar (no) vazio, sobre um fundo escuro com aquilo que se assemelha a um oceano por baixo. Parece coisa pouca, mas a mim surge como uma referência importante ao contexto soció-cultural de Klein. Afinal, talvez este não seja um disco universalista sobre o transe de alienação colectiva. Há outra camada, que está logo na capa, a primeira coisa que se dá a ver e é um quase manifesto escarrapachado – sugere-se aqui uma aproximação ao conceito desenvolvido, entre outros, por Aimé Césaire que é afirmação de uma visão do mundo através da negritude da artista: esta música tem o poder de tocar a todos, claro, mas este acto criativo existe e dá-se a conhecer segundo a consciência critica da experiência individual e colectiva da artista, uma jovem filha de pais imigrantes nigerianos a viver em Inglaterra.

 

 

Texto publicado originalmente no fanzine Skate Snake Zine #2 em 2021


domingo, 3 de dezembro de 2023

6º episódio

Né Ladeiras, Tu e eu, Sonho Azul, Valentim De Carvalho, 1983
Patrice Rushen, Remind me, Straight form the heart, Elektra Records, 1982 
Sea Urchin, Asa (Tahtib Tehbat), Tahtib Tehbat, Bokeh Versions, 2019 
U-She + Holger Kzukay, Secret Remix, Time and Tide, Dignose, 2001 
Aphex Twin, Pulsewith, Selected Ambient Works 85-92, Apollo, 1992 
Yu Su, Melaleuca, Yellow River Blue, Bié Records 2021 
Babyfather, Meditation ft. Arca, BBF Hosted by DJ Escrow, Hyperdub, 2016 
Arthur Russell, Let's Go Swimming (Arthur Gibbons Mix), The World of Arthur Russel, Soul Jazz Records, 2003 
DJ Maboku, Instrumental Pe, Blacksea Não Maya / Piquenos DJs Do Guetto, Príncipe, 2013 
Cabaret Voltaire, Diskono, The Crackdown, Virgin, Some Bizarre, 1983 
Frankie Knuckles ft. Shelton Becton, It's Hard Sometime (The Eclipse), Virgin, 1991
Dream 2 Science, Mystery of Love, Dream 2 Science, Power Move Records, 1990
Nídia, Pose, 95 Mindjeres, Príncipe, 2023
Klaus Kruger, Latin neighbors, Advanced Dance, Early Sounds Recordings, 2018
700 Bliss, Anthology, Nothing to Declare, Hyperdub, 2022
Boo Williams, Echoes Of The Dance, Natural Service EP, Chiwax, 2023
Mike Dunn aka MD III, Face the Nation, Face the Nation ep, Underground, 1988
DJ Danifox, Chopper, Ansiedade, Príncipe, 2023
Trevor Hartley, It Must Be Love,It must be Love, Fu Manchu, 1987, retirado da compilação Harmony, Melody & Style - Lovers Rock In The Uk 1975 - 1992, Soul Jazz Records, 2012

quarta-feira, 18 de março de 2020

5º episódio




Penny Rimbaud, Oh America, lido por John Sharian, com The English Chamber Choir interpretando Agnus Dei de Samuel Barber, Exitstencil, 2002
Shabaaz Palaces, That’s How City Life Goes, Quazarz: Born on a Gangster Star, Sub Pop, 2017
The Residents, Ingrid’s Oily Tongue, The Animal Lover, Mute, 2005
Priscilla Ermel, Campo de Sonhos, Campo de Sonhos, Eldorado, 1992, Origens da Luz, Music From Memory, 2020
Geinoh Yamashirogumi, Keneda, Akira Original Soundtrack, Victor, 1988
Princess Nokia, Brujas, 1992, auto-editado, 2016, Rough Trade, 2017
Anti Social Workers and The Mad Professor, Who’s Watching You?, Punky Reggae Party, Ariwa, 1983
Michael Hurley & Pals, Be Kind To Me, Armchair Boogie, Warner Bros. Records, Raccoon, 1971
Julia Holter, The Falling Age, Tragedy, Leaving Records, 2011
Aldina Duarte, Flor do Cardo, Crua, EMI Music Portugal, 2006
Maria Reis, Soror Mariana, Chove Na Sala, Água Nos Olhos, Cafetra Records, 2019
Archie Shepp e Jeanne Lee, There Is A Balm In Gilead, Blasé, BYG Records, 1969

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Gilberto Gil - REFAVELA

refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços, o povo chocolate e mel
refavela, a fraqueza do poeta; o que ele revela, o que ele fala, o que ele vê.
(1)





Encontrei este álbum por obra dos algoritmos do youtube (às vezes há algoritmos que acertam). Logo, na primeira escuta fiquei estupefacto, sim a palavra é essa porque me senti mesmo envolvido pela música, tão aberta e contagiante e tão poderosa politicamente que fiquei pasmado, magnetizado.
Mais tarde tive a sorte de encontrar o disco e poder adquiri-lo. A capa também ela me envolveu, o retrato de Gilberto Gil que se oferece à contemplação: um rosto bonito e orgulhoso mas contemplativo, os olhos semi-serrados parecem fitar uma luz rasa, um horizonte, será o futuro?
Este disco foi editado em 1977, no mesmo ano em que na Inglaterra os os punks gritavam que não havia futuro e que isto estava tudo condenado, do outro lado do atlântico e mais a Sul, Gil tomava consciência da importância de afirmar a sua negritude e de projectá-la de uma perspectiva crítica no futuro. Nesse ano Gilberto Gil participou do 2º Festac — Festival Mundial de Arte e Cultura Negra que foi um grande evento realizado em Lagos, na Nigéria, e que reuniu artistas negros e da diáspora negra. Estavam representados países da África e comunidades afro-descendentes, da América do Sul ao Caribe, passando pelos EUA e Europa. Este festival pretendia celebrar a cultura negra através da difusão e diálogo entre várias culturas num misto de movimento Pan-Africano  politicamente engajado mas que ao mesmo tempo foi usado pelo governo para reforçar o poder na própria Nigéria. Fela Kuti afastou-se (ou foi afastado) do Festival e aparentemente teve até problemas com as autoridades (2), o que não fez com que Gilberto Gil deixasse de frequentar o círculo deste músico mundialmente conhecido. A influência deste encontro foi enorme, Gil nessa altura tinha 34 anos. O nome do disco foi pensado para fazer parte de um trilogia, precedido por Refazenda de 1975 de temática mais rural e Realce, de 1979, que é o disco que encerra este trio. Refavela então é um disco que fala dessa tomada de consciência aberta e plena da negritude brasileira, o título provem directamente da experiência na Nigéria, como comenta o artista: (…)reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas (3). Na letra da Música Refavela essa ideia está presente: O ambiente / Efervescente / De uma cidade a cintilar / A refavela / Revela o salto / Que o preto pobre tenta dar / Quando se arranca / Do seu barraco / Pr’um bloco do BNH [Banco Nacional da Habitação] (4). No interior do invólucro do disco podemos ver várias fotografias tiradas na Nigéria, Caetano Veloso incluído, assim como a comitiva brasileira e aspectos da vida quotidiana da capital e do Festival. O que Gilberto Gil neste disco pretendeu, com todas as influências que foi beber a Lagos, foi redireccionar essa energia para as raízes da cultura Africana no Brasil, pegando nos ritmos do Samba por exemplo, usando inclusivamente temas para blocos de escolas de Samba como a Ilê Aiyê (expressão que vem da língua Yoruba: ilê, ‘patria' e aiyê, 'para sempre' ou 'em eternidade’) (5). Somo crioulo doido / somo bem legal / Temo cabelo duro / Somo bleque pau (6) (em outras versões desta musica que podemos encontrar na internet, Bleque pau aparece como Black Power, tendo optado Gilberto Gil por adaptar a escrita à fonética da língua), aproveitando estes versos da música escrita por Paulinho Camafeu, Gil partindo da cadência sonora das palavras, faz uma incursão experimental, um ensaio talvez inconscinete e involuntário do que seria mais tarde o Hiphop. Ou seja, Gilberto Gil projecta novas sonoridades de influência Africana e faz surgir outras possibilidades musicais dessa mistura.
Apesar de se centrar em música de influência Africana directa, este é um álbum muito eclético musicalmente. No tema Balafon, Gilberto enumera as várias maneiras de referir a esse instrumento primordial usando esse instrumento tão importante em tantas culturas como possibilidade e símbolo de encontro e co-existência, explodindo a música em guitarras que não nos deixa resistir ao contágio de alegria e celebração abraçando o Afrobeat que recolheu na Nigéria. Cada vez que ouço esse tema não consigo deixar de sentir um insuflar de boa energia.
Na música No norte da Saudade também se abre espaço para sonoridades reagge e afro-caribenhas. O disco não se centra todo na temática da cultura negra, músicas como Nova Era por exemplo, falam-nos do questionar da ideia de tempo, da construção que é a História, da cristalização das ideias e ideais. Mas também O melhor lugar do mundo que nos vem recordar que devemos aproveitar todos os momentos e tirar partido do que de belo o instante contém. Mas apesar de serem letras mais intimistas nem por isso se desligam de todas as outras mais politizadas, aliás parece-me que as complementam e reforçam, só estas de foro mais íntimo fortalecem as outras mais compulsivas, lhes permitem ter espaço para reverberar em nós. Uma verdadeira revolução na consciência do colectivo não se fará sem que individualmente estejamos preparados para essa tomada (e conversão) do poder numa outra coisa que não o vigente.

Este texto foi escrito algum tempo antes de saber se quer que Gilbero Gil viria apresentar o disco num concerto em Belém, junto ao Tejo. Foi um momento mágico de entrega total e comunhão de todos os presentes. Gilberto Gil fez um comentário muito interessante, curto e oportuno: os barcos saíram em direcção ao Brasil à 500 anos daquele mesmo sítio onde naquela noite estava a ser apresentado este disco que fala de toda a construção na identidade afro-brasileira que é resultado directo das políticas económicas e sociais do Portugal daquela época. Achei significativo, olhar para os lugares onde se constrói a História e as estórias.

Voltando ao disco, o prefixo Re, em 1977 pretendia falar dos problemas raciais da sociedade brasileira. O título Refavela, explicitava a construção de novas Favelas mascaradas de melhoramento da vida dos brasileiros. Este é um problema que não foi resolvido, adensou-se, e não só no Brasil, o racismo prevalece encapuzado, se não é oficial, parece. Este disco infelizmente permanece actualíssimo e este ano em que Marielle Franco foi assassinada por representar um esforço na denúncia dos abusos da polícia militar nas intervenções nas Favelas do Rio de Janeiro é mais uma prova disso. A política do governo brasileiro cada vez está mais musculada e assenta num obscurantismo medieval que favorece os corruptos e perpetua a estratificação social. Espero com ansiedade pelos resultados das eleições no Brasil de dia 7 de Outubro, espero que a direita mais reaccionária seja arrasada! Tem de ser. Este disco apesar de ser urgente em 1977 e de infelizmente continuar a ser, prova que é a arte e são discos como este que nos dão alguma esperança e sentimento de resistência. Aconselho vivamente a sua escuta.


(Bolsonaro ganhou, e tudo o que parecia impossível aconteceu e é medonho o que tem acontecido de lá para esta data)

Texto publicado Originalmente no fanzine Cleópatra #11 em Outubro de 2018


1 ver disco
2 https://africaemquestao.wordpress.com/2012/07/27/trabalho-sobre-o-festival-negro-e-africano-das-artes-e-da-cultura-festac/
3 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=714&letra
4 ver disco
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Il%C3%AA_Aiy%C3%AA
6 ver disco

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Flux of Pink Indians: A merda dos caralhos tratam-nos como conas

Flux of Pink Indians . The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks / The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts . Spiderleg Tapes . 1984  A merda dos  caralhos tratam-nos como conas , É uma muito má e pouco polida tradução do título deste duplo álbum dos Flux of Pink Indians (FOPI), mas pode ser a que melhor encontro para transmitir a ideia do disco. Aqui, a redução dos géneros aos orgãos genitais (como é óbvio sabemos que esta questão é bem mais complexa que uma simples dicotomia e entendimento binário do géneros mas como falamos deste disco em específico vamos tentar ter uma abordagem mais simplificada e focarmo-nos nas disparidades e abusos sobre as mulheres e os seus corpos e sobre a cultura falocentrica e bélica que daí provem, não excluíndo que o propósito do álbum seja uma discussão mais alargada dentro dessas mesmas questões de género). Uma cona e um caralho em oposição, em confronto? Este duplo álbum de 1984 tem dois títulos, o disco 1 como The Fucking Cunts Treat Us Like Pricks e o 2 como The Fucking Pricks Treat Us Like Cunts. Quando saiu foi banido pelos distribuidores devido ao título e capa sexualmente explícitos, cópias foram apreendidas pela polícia, uma loja de discos foi acusada de exibir “Publicações com artigos obscenos com vista a obter lucro” (1). Afinal não era só na Jugoslávia e na RDA, por exemplo, que os punks eram intimados e controlados pelo estado (não estou a fazer apologias partidárias, apenas a esclarecer que também em países “democráticos” há controlo dos nossos movimentos e acções). As letras deste álbum são na sua maioria sobre essa mesma obscenidade que é a violência entre homens e mulheres baseadas na experiência de um membro da banda, que foi abusada sexualmente. Este é um álbum que nos fala também sobre outros assuntos nomeadamente a crítica o movimento punk, a guerra, o capitalismo, é um disco que em suma se encaixa perfeitamente no tipologia ideológica de uma banda Anarco-punk. Crítica e auto-crítica (que é sempre bem vinda). A primeira música, Punk, não se demora muito em críticas elaboradas à cena punk como os Crass fizeram, aqui apenas há a repetição da palavra Punk e suck, no final da música ouvimos o grande arroto. Esta é uma das músicas mais curtas do álbum, 1’30’’. Coisa atípica para uma banda punk, o resto das músicas alongam-se por vários minutos, até porque não há interrupções, o que ouvimos é quase uma cacofonia contínua. Esta primeira música anuncia aquilo que vamos ouvir no resto do álbum, velocidade e sujidade, muita sujidade. Se a bateria segue muitas vezes a norma daquela que é a bateria do punk, os FOPI acrescentam-lhe distorção em doses quase intoleráveis. Aliás, inaudibilidade é uma palavra que poderia definir este disco. A sujidade é tanta que parece carregada de matéria corrosiva, ácida, chega a parecer que as fitas de gravação foram queimadas  com ácido para obter essa corrosividade, esse desgaste. Mas o disco não se faz só de distorção embora seja essa grande bebedeira catártica, conseguida através do desgaste sonoro, que prevalece. Noise, noise e mais noise. Mas não temos aqui um disco de Harsh noise, lá pelo meio conseguimos até distinguir um baixo que às vezes faz até lembrar uns Joy Division menos polidos ou uns A Certain Ratio ao improviso aquando dos trompetes que se escutam aqui e ali. Colagens que se atropelam, interrompem-se músicas, para voltar ao que ouvíamos anteriormente de forma aparentemente abrupta, mas só aparentemente, há aqui um trabalho meticuloso de colagem à pinça que convém não esquecer ou menosprezar. É bom encontrar bandas que não se fecham sonoramente, abolindo o sectarismo musical. Esta banda conseguiu ter um muito alargado espectro de sonoridades, mesmo dentro de um único álbum. E ao longo da sua carreira conseguiram abraçar, o punk, a música industrial, o Dub, a poesia falada, gritada e cantada. Este The fucking cunts treat us like pricks faz uso de colagens de sons retirados de programas televisivos, fragmentos de conversas e loops que ajudam a alargar conceptualmente o disco, porque a própria música já não é produzida apenas por instrumentos musicais, e isso culminou no disco posterior Uncarved block que é um álbum fumegante, carregado de ecos e delays, uma bela peça de Dub dançante e ao mesmo tempo introspectivo, esse é um álbum parece ter sido todo feito em estúdio. Quer me parecer que o que pretendiam com o Fucking cunts era fazer uma peça sonora para se ouvir de seguida do princípio ao fim, não um disco com canções isoladas. 
Os Crass também ensaiaram essa ideia dentro das manifestações culturais proveniente do punk por isso é que ambas as bandas não tiveram sucesso comercial, como por exemplo os Sex Pistols ou os the Clash, foram até denunciantes da relação promiscua que as segundas tiveram com grandes companhias discográficas, questionando afinal para onde se dirigia o movimento punk. Ou seja, a música aqui é entendida como uma uma experiência estética e política proporcionada pelo som, uma ideia que se quer transmitir não apenas com ritmos construídos com instrumentos tradicionalmente usados em bandas pop-rock com uma estrutura formal de cantiga, mas com sons provenientes de outras fontes, alterados e mediados posteriormente, e isso é muito importante para quebrar barreiras naquilo que foi e ainda prevalece como uma ideia feita do que é a música punk e em última instância aquilo que se pensa ser a proposta do movimento punk. Punk não é só aprender 3 acordes e fazer uma banda, há de ser fazer à margem, questionando o centro. Politicamente ou artisticamente. Os Crass, por exemplo, fizeram-no com astúcia aproximando-se do centro (mesmo que em permanente crítica e auto-crítica e quando digo que os Crass se aproximaram do centro não quero dizer que tenham feito música pop para se relacionar com as pessoas, refiro-me por exemplo aos constantes actos de sabotagem à industria dos media ou à montagem sonora que fizeram em que simularam uma conversa entre Tatcher e Reagan em que Reagan em plena guerra fria dizia que ía usar a Europa como área de testes com mísseis nucleares (2). Essa fita foi distribuída com o máximo sigilo e anonimato mas mesmo assim foram descobertos, assediados, intimados  e controlados pela ScottLand Yard, vendo-se envolvidos num verdadeiro caso de contra-espionagem, em que se chegou a sugerir que teria sido o KGB a produzir essa fita com vista a acelerar as tensões entres os estados envolvidos na Guerra Fria. Esta é a aproximação do centro que referia, é estar no centro da mediatização, da atenção das instituições de controlo e espectáculo). Assim que os Crass se aperceberam de estarem a acercar-se demasiado do epicentro, devido a esse constante controlo e à paranóia que dele foi consequência, implodiram. Há várias questões que se levantam como por exemplo: até que ponto o pacifismo preconizado pelos Crass e também pelos Flux of Pink Indians é compatível com a agressão física, como é que o pacifismo pode ser arma de defesa? Não sei como estes projectos musicais, artísticos e políticos podem, a determinada altura, não reagir a provocações e intimações de violência física directa, mas também à violência resultante das políticas sociais de um estado, que pode ser  muitas vezes física mas sobretudo emocional; ou o que fazer com o poder que se obtém da contestação ao próprio poder? Tenho uma enorme admiração artística e política por estes projectos, mas não deixo de levantar estas questões, como os próprios fizeram, porque são de facto tão importantes. É que na verdade a questão e a resposta são o próprio percurso destas bandas: recusa do poder, contestação à margem, aquisição involuntária de poder, implosão como reacção e incapacidade de lidar com esse poder adquirido. Pode perceber-se o paradoxo em que se encontram os críticos que o fazem fora do sistema, se as bases que sustentam um sistema social não tiverem acesso à crítica a esse sistema, se não houver um trabalho de implementar e de se relacionar com essas bases, que mudança existirá e como? Quando me refiro à crítica, acho que pode ser também o fazer Arte e a experiência artística resultante do acesso à Arte. Não estou a defender uma espécie de messianismo, mas é urgente perceber que a distância entre a crítica e aqueles que de alguma maneira sustentam, ainda que inconscientemente, um sistema que os oprime, eventualmente não trará grandes resultados. Embora este próprio texto não passe de mais um exemplo desse desfasamento entre eu e os meus tios, por exemplo. Como é que se faz esse trabalho de desacreditação deste sistema tão complexo de forma congruente, verdadeiramente contestatária, inequívoca e sem fazer concessões, sem entrar no espaço mediatizado que transforma tudo em espectáculo? Não sei bem (mas tenho algumas parcas luzes que agora vou guardar para mim…). 
Voltemos ao disco dos FOPI. Apesar de ser um álbum que pretendia expor e denunciar a misoginia presente na Inglaterra e por todo o mundo nos anos 80, havia, por parte dos membros da banda a ideia de que tudo isto é um problema mais complexo e que o resultado desse sistema patriarcal é proveniente de um estado que promove a guerra, a manipulação mediática da informação, o fanatismo religioso, o capitalismo, etc. De facto é central a temática do abuso sexual e da violência sobre as mulheres. Há momentos no disco em que se sente uma náusea, tanto pela sonoridade agressiva, como pelas descrições horríveis de casos de violações e da própria exposição da vítima destas situações perante a polícia e tribunais e da acusação velada que muitas vezes pode saí resultar. Isto deve ser de facto traumático. Muito triste mesmo. Mas há também referências à guerra na Irlanda, à guerra nas Ilhas Maldivas, ao jornal Sun que estupidificava e continua a estupidificar os seus leitores, à guerra nuclear, à sociedade de espectáculo, à irresponsabilidade ecológica  e social dos governos, entre outros assuntos abordados neste disco de maneira bastante dissecada e explícita. É de louvar a percepção de que os problemas que envolvem o patriarcado e a violência sobre as mulheres faz parte de uma teia complicada, um emaranhado de relações económicas e sociais que nos aliena das causas dessa violência. Triste é perceber mais uma vez que todos estes problemas se intensificaram, forma-se um novelo que desvirtua os vínculos sociais e económicos e tudo ficou ainda mais confuso e denso e que é cada vez mais difícil distinguir onde está o alvo e para onde dirigir toda esta raiva, sendo sempre mais fácil culpar as camadas populacionais mais desprotegidas, bater no mais fraco. O Big Brother, afinal vivemo-lo “também” nos estados “democráticos”. A informação é cada vez mais difusa, embora tenhamos a sensação que nunca tivemos o acesso a ela tão facilitado. Álbuns assim ajudam-nos a destilar, a exorcizar e, esperançosamente, a reagir às agressões resultantes destes tempos sombrios em que vivemos.


Publicado originalmente no fanzine Cleópatra #10 em Outubro de 2018 e posteriormente adapatado para Banda Desenhada na Revista Decadente e Pentângulo #3





2 https://www.youtube.com/watch?v=QmfLP1IOip8
  

domingo, 13 de outubro de 2019

4º episódio


Beverly Glenn-Copeland, Ever New, … Keyboard Fantasies… , Atlast Records, 1986
Lou Reed, Families, The Bells, Arista, 1979
Chance, Samba de morro, retirado da compilação The Sexual Life Of The Savages, Soul Jazz Records, 2005
Pekka Airaksinen, Sukirti, Buddhas Of Golden Light, O Records, 1984
Ondness, Torre, Not Really Now Not Any More, Holuzam, 2019
K.U.K.L., Moonbath, The Eye, Crass Records, 1984
Midori Takada, Tromp-l’oeil, Through The Looking Glass, RCA Red Seal, 1983
Nicole Mitchell, Cave of Forgotten Spring, Engraved in the Wind, Rogueart, 2013
Maxxxbass, Untitled (track 6), Gone Fishing, L.I.E.S (Long Island Electrical Systems), 2018
The Space Lady, Major Tom, The Space Lady Greatests Hits, Night School, 2013
David Bowie, Heathen (The Rays), Heathen, Columbia, 2002
Loose Joints (Arthur Russel/Steven D’Acquisto), Is It All Over My Face (Larry Levan Mix), retirado da compilação The World Of Arthur Russell, Soul Jazz Records, 2004
Meredith Monk, Traveling, Dolmen Music, ECM Records, 1981
Joni Mitchell, Boths Sides, Now, Clouds, Reprise Records, 1969

terça-feira, 3 de abril de 2018

3º episódio

Pixies . Ana, Bossanova, 4AD, 1990
Alice Coltrane . Keshava Murahara, Divine Songs, Avatar Book Institute, 1987
Laibach, Across the universe, Let it be, Mute, 1988, tema original dos Beatles
Thor & friends . Mouse Mouse, The Subversive Nature of Kindness, LM Dupli-Cation, 2017
The Durruti Column. For Belgian Friend, LC, 1980, retirado da reedição da Factory Benelux, 2016
Grandmaster Flash & The Furious Five . The Message, Grandmaster Flash & The Furious Five, Sugar Hill Records, 1983
Djamal . Revolução (Agora!), Abram Espaço, BMG Portugal, 1997
Chavela Vargas . Somos, Somos, WEA, 1996
Niña de la puebla . Los Campallineros, gravação e ano incertos, retirado da compilação The Essential Guide, Music Brokers, 2007
Pixies . Evil Hearted you, Planet Of Sound, 4AD, 1991, retirado da compilação Complete ‘B’ sides, 4AD, 2001, tema original dos Yardbirds cantado em inglês
Iggy Pop . Long Distance, Avenue B, Virgin, 1999
Sallim . As minhas gavetas, Isula, Cafetra Records, 2016
Gal Costa . Passarinho, Índia, Philips, 1973
Sade . Smooth Operator, Diamond Life, EPIC, 1984
Paulino Semedo e Vicente Alvarega avec la participation du groupe Nhakus . Noa Presta, edição e data desconhecidas
Marku Ribas . Colcha de retalhos, Barrankeiro, Philips, 1978
Jun Togawa . ある晴れた日, Kyokuto Ian Shoka, Yen Records,1985
Prince and the Revolution . Purple Rain, Purple Rain, Warner Bros Records, 1984

quarta-feira, 7 de março de 2018

2º episódio


GAC . Cantiga sem maneiras, Pois Canté, Vozes Na Luta, 1976 
Popol Vuh . Hosianna Mantra, Hossiana Mantra, Pilz, 1972 
Fausto . Lembra-me um sonho lindo, Por Este Rio Acima, Triângulo, 1982 
Grouper . Fishing Bird (Empty Gutted In The Evening Breeze), Dragging A Dead Deer Up A Hill, Type, 2008, retirado da reedição da Kranky de 2013 
Tim maia . Preciso aprender a ser só, Tim Maia, Polydor, 1971 
Neil Young . On the beach, On the beach, Reprise Records, 1974 
Vincent Gallo . The way it is waltz, Recordings Of Music For Film, Warp Records, 2002 
Kuniyuki Takahashi . Drawing Seeds, Early Tape Works (1986 - 1993) Vol. 1, Music From Memory, 2018 
Laurel Halo . Airsick, Quarantine, Hyperdub, 2012 
Louisa Mark . Caught you in a lie, Caught you in a lie, Safari Records, 1975 retirado da compilação Harmony, Melody & Style (Lovers Rock In The UK 1975-1992), Soul Jazz Records, 2012 
David Bowie . It’s gonna be me, 1975 retirado de Young Americans, Rykodisc / EMI, 1991 
Nico . Afraid, Desertshore, Reprise Records, 1970 
NiedoWierzanie . Illusions, Tous les chemins de mon pays, URUBU TAPES, 2018 
Norberto Lobo . Figueira, Muxama, Three:four Records, 2016 
Travadinha . Blimundo, Feiticeira de cor morena, Associação De Amizade Portugal - Cabo Verde / Associação Caboverdeana, 1986 
Von calhau! . O Caminho Da Cabra, Quadrologia Pentacónica, Rafflesia, 2011

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

The Residents: antropofagia nos Estados Unidos em 76

Ao ouvir o disco The Third Reich’N Roll dos The Residents, recordei-me do Manifesto Antropofágico de Oswald, dos rituais antropofágicos e da ideia de antropofagia (do grego anthropos, homem e phagein, comer) que é a ingestão de carne humana em certas tribos, não por necessidades de nutrição, antes para absorção de poderes e atributos daquele que era ingerido, na maioria dos casos este acto era um ritual mágico para prestar homenagem a alguém e adquirir as suas características. O Manifesto Antropofágico, publicado na Revista de Antropofagia em 1928, escrito por Oswald de Andrade, alude a uma ideia de ingestão da cultura europeia que foi e é estabelecida como progressista, iluminada e iluminante e que foi imposta às populações indígenas do Brasil, que deveria ser regurgitada num outro entendimento da identidade brasileira enquanto cultura construída a partir da sua real entidade pré-colonial em relação com a cultura ocidental industrializada. Tal como o índio Tupi, a cultura brasileira deveria ingerir a europeia resultando dessa digestão uma espécie de absorção das características positivas da Europa colonizadora pelo corpo cultural brasileiro. O índio Tupi comeria o seu inimigo para ficar mais forte. O que defendia a utopia antropofágica modernista era que dessa ingestão resultaria uma verdadeira emancipação da cultura brasileira, afastada da burguesa e patriarcal europeização ¶ Esta corrente modernista brasileira defendia que o Brasil deveria iniciar uma revolução no entendimento da sua relação cultural (e política) com o peso do violento passado de um território colonizado por Portugal e pela Europa enquanto conjunto de estados imperialistas, que enraizaram à força a sua cultura ao longo dos séculos como a única e universal, asfixiando e demonizando as estruturas culturais, politicas e sociais das populações donas desses territórios ¶ Este disco dos The Residents fez-me pensar nessa ideia de antropofagia ¶ Pode-se pensar nos The Residents como os antropófagos dos EUA, neste álbum ingerem cerca de trinta músicas do top 40 americano dos anos 60 e regurgitam duas suítes, Swastikas On Parade e Hitler Was a Vegetarian.
O que os The Residents propunham em 1976, com este disco lançado pela Ralph Records era uma ideia antropofágica de intervencionar o Top 40 dos E.U.A e o resultado foi este álbum. (Double shot) Of my baby’s love dos americanos The Swinging Medallions, é uma música solarengamente adolescente. Woke up this morning, my head was so bad/ The worst hangover that I ever had, no disco dos The Residents é cantado por um coro ressacado, o enjoo é tão enfatizado que a sensação é a de uma grande vertigem, uma insuportável dor de cabeça, um arrastado sofrimento. A náusea e decadência, são aliás sentimentos que nos vão acompanhando ao longo de todo o disco. Na versão de Light my fire dos The Doors há a repetição do refrão dessa canção por uma voz masculina completamente decrépita, com um acompanhamento musical característico da imagética relacionada aos circos decadentes. Qualquer sexualidade que pudesse emanar da voz e do corpo de Jim Morrison é aqui aniquilada, temos antes um homem caduco que num tom superior ordena Come on baby light my fire, come on baby light my fire, mas que na verdade o que diz, soa mais a uma imploração vomitada e agressiva, de quem, numa última tentativa de provar as suas faculdades sexuais, o que acaba por nos mostrar é a sua humilhante situação de perda da sexualidade. Faz-nos imaginar um corpo arruinado e rejeitado. Se havia sensualidade nessa música os The Residents dão-nos bizarria e fealdade. Também a música, In a Gadda da Vida dos Iron Butterfly, uma banda hard-rock psicadélica, é transformada em música punk, e o que o punk tem de rude e áspero está nesta versão, a voz tem o atrito, a bateria tem a velocidade e precisão, quase roça o hard-core, o crust, ou alguns desvios musicalmente ainda mais agressivos da música punk. O que fica é de novo o enjoo, a decrepitude que percorre as duas músicas que compõem o álbum. A ligar todos os trechos de músicas está um emaranhado de tecidos sonoros, através do qual se ligam todas as versões das músicas que foram alvo de apropriação por parte dos The Residents, contribuindo esses interlúdios para que o disco soe familiar e totalmente alien ao mesmo tempo (1) . Esses arranjos, sejam eles samples de metralhadoras, acidentes de automóvel, improvisações jazz caóticas que podem fazer lembrar Sun Ra ou o uso de instrumentos musicais de baixa qualidade, são como delicadas membranas que unem as músicas intervencionadas (destruídas) pelos The Residents. Mesmo passados cerca de 35 anos, algumas dessas intervenções podem fazer-nos lembrar algumas práticas na música exploratória contemporânea como são, por exemplo os Hype Williams, que para além de recorrerem a samples de sons das mais variadas situações quotidianas e da cultura pop, como jogos de consolas fazem, também eles, uma apropriação de outras músicas, distorcendo-as e decompondo-as para a criação de novas, e também nos seus álbuns (principalmente nos primeiros) há um arrastamento, quase uma suspensão do tempo que vai decorrendo lentamente, mas em vez da cacofonia agressiva do The Third Reich’N Roll ainda que se sinta um arrastamento, nos Hype Williams há uma óbvia ambiência fumegante, quase adocicada onde são reciclados os anos 80, 90 e o advento da cultura pop a uma escala global associada a essas décadas. Parece-me que os The Residents abriram as portas a novas sonoridades, recorrendo ao uso da música popular parodiando-a, destruindo-a regurgitando uma nova maneira de pensar a música fora dos círculos ligados à teorização musical. Sempre houve nos The Residents uma vontade de fazer música sobre música (2) , e com essa metalinguagem pavimentaram-se novos caminhos em direcção a um entendimento contemporâneo da cultura, há espaço para a auto-referencialidade, e também para uma desejável auto-crítica. Mas, e é aqui que julgo que os The Residents são importantes, apesar de lidarem com assuntos sobre a ideia de música como algo que pode e deve questionar os seus limites, eles fizeram isso com a música proveniente da cultura popular e com humor, desenvolvendo as suas investigações musicais usando os modelos que adoptaram dessa mesma cultura de massas, e a sua criação foi mostrada não apenas dentro dos círculos intelectualizados, mas nos circuitos da cultura popular, replicando essas estratégias de marketing e divulgação, mas por causa da sua criatividade, espírito vanguardista de não alinhamento e principalmente, por causa da sua música difícil, diferenciaram-se dos ícones Pop comuns. São exemplos da replicação das estruturas basilares da Pop os concertos públicos, os discos, a criação de uma identidade/marca que os promovia e sobretudo a invenção de quatro personagens, à imagem de várias bandas da cultura popular, como os Beatles ou os Rolling Stones (sempre na mira dos The Residents, entre outros) que os admiradores podem idolatrar, sendo que os The Residents trocaram um corpo por um olho gigante na cabeça e por um smoking, imagem que foi sendo alterada ao longo do tempo, e, julgo eu, foi esta ausência de um corpo visível e reconhecível, o anonimato dos artistas que permitiu que os The Residents pudessem continuar ainda hoje com o seu trabalho, porque de facto qualquer pessoa pode tomar o lugar do anterior nesta banda, e nenhum posto é irrevogável, sendo assim o projecto (colectivo?) pode continuar. Este disco, apresenta-se também como uma clara crítica à subversão da revolta que se profetizou com o aparecimento do rock’n roll, o sistema absorveu a juventude e integrou-a, juntamente com as suas manifestações culturais, num sistema capitalista pasmacento e confortável, encabeçado por algumas solarengas bandas de surf e garage-rock. 



Podemos ver na capa deste disco o cartoon Dick Clark vestido com uma farda nazi e jovens casais com a cara de Adolf Hitler a dançar em seu redor. Uma imagem cómica do controlo das massas pela música convencionada e dentro das regras. Uma ilustração maquiavélica mas bem humorada do totalitarismo cultural. Se ouvíssemos de seguida as músicas originais que foram torcidadas pelos The Residents neste disco, provavelmente teríamos uma festa com música dos anos 60 divertida, que ainda hoje nos diverte, mas o que eles fizeram foi pegar nessa ingénua vontade de aparentemente viver sem preocupações, fomentada nos EUA (apesar da guerra do Vietnam e dos graves conflitos sociais internos, como a segregação racial e as diferenças abismais entre classes por exemplo) e transformar tudo isso num avassalador caos musical obscuro e indisposto. Exactamente por todas estas questões ligadas à crítica da cultura de massas e aos aspectos socio-políticos inerentes, juntando-lhes a complexidade rítmica e de texturas sonoras faz dos The Residents e deste disco, The Third Reich’N Roll, uma obra que merece ser ouvida e compreendida com toda a atenção e seriedade, apesar de toda a carga cómica e satírica que sempre foi constante neste projecto.



publicado originalmente na publicação O Príncipio em Novembro de 2013

1 POUNCEY, Edwin, The Primer: The Residents in The Wire, nº 204, Londres, Fevereiro 2001, p. 45 
2 http://www.residents.com/historical4/classic/page11/page11.php





segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Matana Roberts: As imagens e a música

Se me perguntarem, em relação ao trabalho de Matana Roberts, se primeiro vieram as imagens ou as músicas, eu respondo que primeiro veio, e ficou instantaneamente, a música e só depois as imagens. ¶ Já tinha ouvido falar de Matana Roberts, tinha tocado na ZDB em 2011. Mas não vi o concerto, nem percebi muito bem do que se tratava. Em 2013, reparei na capa da revista Wire, que tinha um retrato da artista, e fiquei intrigado com a imagem: uma rapariga afro-americana com dreadlocks que caíam sobre um casaco militar norte-americano e que deixavam, a descoberto, as letras MY da palavra ARMY. Pensei, automaticamente, no possível anacronismo dos símbolos que via na fotografia (afro-americana vs. uniforme do exército, símbolo militar do imperialismo Estado-uniense), e imediatamente abri a revista e comecei a ler. Mais tarde, pedi a revista emprestada a Sérgio Hydalgo e, no comboio a caminho de casa, li com mais atenção todo o artigo. Fiquei interessado e procurei o disco que tinha saído naquela altura, Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile que ouvi incessantemente.


Este foi, provavelmente, o primeiro disco de jazz que ouvi a sério. A minha escola musical foi outra, a do rock e dos seus desvios mais ou menos previsíveis. Naquela altura, estava sedento de encontrar música que falasse de questões relacionadas com a problemática da discriminação racial, feita por quem a sente de maneira directa. Música que soasse a isso (para além da música tradicional e popular: folk music de outras latitudes que volta e meia escuto e colecciono). ¶ O rock que ouvia não me permitia encontrar isso. Algo me dizia que poderia encontrar essa energia no jazz. Foi isso que Matana Roberts me proporcionou: a aproximação a uma linguagem que eu desconhecia (e continuo a desconhecer na verdade). Daí para a frente, fui escavando, encontrando aqui e ali, quando me era possível, outras luzes com as quais vou sentindo empatia e que me acompanham musical e eticamente. ¶ Mas o que é que uma pessoa do sexo masculino, caucasiana, de 29 anos, nascida numa zona rural de um país no cú da Europa pode procurar na música jazz? Com que legitimidade pode ela querer meter-se nessa trincheira? O que é que tem a ver com as reivindicações propostas pela música jazz enquanto música potencialmente politizada? Tudo. ¶  Tem tudo a ver, quanto tem a ver com outras reivindicações relacionadas com problemáticas como as de classe, sexualidade, sexismo, xenofobia, homofobia, etc… (que se cruzam entre si). Toda a música pode ser um canal para falar e tentar compreender questões discriminatórias, de todos os tipos. O indivíduo (aparentemente) privilegiado tem o direito (até tem é o dever!) de ouvir esta música, porque ela, ao falar de descriminação racial, tem a capacidade de também espelhar todos os tipos de descriminação e todos os tipos de opressão. ¶ Não sou afro-descendente (embora sejamos todos), nem sou mulher. Muito do que a música de Matana Roberts convoca é a história da condição dos afro-descendentes e questões ligadas ao género e à objectificação feminina. Toda a raiva, toda a consternação que possa ser veiculada para e pela sua música, eu não a consigo sentir directamente porque não sou alvo directo dessa discriminação. Mas sou alvo de outras e sou totalmente solidário com as suas causas, pois sinto que a máquina que oprime o Outro é a mesma que oprime a mim. Por outras razões, numa outra escala, de maneira diferente, claro, mas parece que é a mesma. Não vivo numa redoma ou numa torre de marfim e não me posso demitir de observar e constatar o que o Outro sente porque faço parte do mesmo meio que o Outro, consigo partilhar a sua revolta. ¶ A minha intenção não é ser paternalista, é apenas clarificar que não podemos sentir igualmente porque não somos iguais. O que não significa que nos sejam vedadas as mesmas oportunidades, os mesmo direitos. Não significa que não possamos lutar juntos, que não nos possamos encontrar no mesmo esforço. ¶ De facto, o tema da escravatura é um tema que reverbera até hoje, não só nos Estados Unidos, mas também um pouco por todo o mundo colonizado/colonizador. Todos nós conhecemos a maneira como a Europa colonizadora estropiou e espoliou os Novos Mundos, como tão bem observou Tuiavii: ¶ Por mim não me espantaria muito que o Papalagui nos tivesse trazido o Evangelho à laia de mercadoria, em troca dos nossos frutos e da mais bela e maior parte da nossa terra, da qual se apropriou. (1) ¶ As consequências são visíveis e só não as vê quem não quer, só as não admite quem não quer. Todos devemos ter noção de que vivemos numa sociedade segregacionista, mesmo quando não se autodenomina assim. Basta olhar para quem ocupa determinados postos de trabalho, para a maneira como as cidades são organizadas e para quais áreas são destinadas cada uma das camadas sociais. Tudo parece estar organizado e estratificado, como se vivêssemos numa sociedade oficialmente segregacionista. Mesmo que, oficialmente, a escravatura tenha sido abolida em 1863 nos Estados Unidos; o Apartheid, na África do Sul, terminou apenas em 1990; e as antigas colónias portuguesas tiveram que sangrar numa guerra para obterem a sua independência até 1974, por exemplo. ¶ Ainda que hoje tenha sido eleito um presidente afro-americano nos EUA, os traumas da escravatura ainda ecoam na nossa sociedade, e Matana Roberts fala sobre isso: ¶ O facto de que há uma mulher na Casa Branca, que é descendente de escravos do Sul dos Estados Unidos deixa-me mesmo perplexa. (2) ¶ Sobre esta questão, Matana Roberts aprofunda mais e diz: a eleição de Obama foi um enorme passo para a América, e um enorme passo para a inclusão da história Afro-Americana nesse processo. Mas agora levanta-se a questão de onde é que os artistas Afro-Americanos devem pôr esse foco criativo que vem de trás… Alguns assuntos com que os nossos antepassados lidaram estão ainda, obviamente, infelizmente presentes, mas [agora existe aí] uma profundidade que pode ir além das ideias referentes apenas à comunidade Afro-Americana. Isto está a abrir um outro ponto de vista para que possamos usar a nossa história como uma forma de mostrar a outras pessoas que lidam com uma reciclagem do que nós talvez tivemos de lidar e, em certo sentido, [estão] a lidar também. Estou a falar principalmente de imigração, direitos LGBT e tráfico humano. Estes são exemplos de actos de registo histórico meramente a repetirem-se a si próprios. (3) ¶ De facto a eleição de Obama para presidente dos Estados Unidos foi um grande passo para a inclusão da comunidade Afro-Americana, no entendimento da história dos EUA, mas isso não veio resolver os problemas segregacionistas dessa sociedade, que são problemas de uma profundidade e complexidade tal que não seria um só homem a resolve-los. ¶ Esses problemas agudizam-se à medida que se agudiza a crise do capitalismo, prova disso são os protestos por parte das comunidades Afro-Americanas aquando dos assassínios cometidos pela polícia de jovens negros nos últimos meses (protestos em que a própria artista esteve envolvida). A violência policial empregada nesses casos faz lembrar a dos anos 60 e estas lutas parecem tão pertinentes como as dos Black Panthers nessas décadas. ¶ A eleição de Obama é um marco importante na história dos EUA e isso é um passo gigante que tende a forçar a inclusão oficial da comunidade Afro-Americana nesse processo de transformação histórica (indiscutivelmente que é), mas a verdade é que a sociedade norte-americana não acompanhou esse passo, e as crises sociais internas e a destabilização internacional provocada pelos interesses económicos dos EUA parecem-me ser o reflexo disso. ¶ De facto, admiro imenso a clarividência com que Matana Robets avalia a situação do seu país, que se reflecte também no seu interesse e na a investigação sobre sua genealogia familiar, que conseguiu estruturar com o auxílio dos recibos de venda dos seus antepassados em leilões. Isso é perturbador e diz muito sobre os pilares deste país, e como as coisas puderam ser montadas numa maneira muito particular que deixou tantos de fora. (4) ¶ Um facto interessante, enunciado pela artista no texto a cima, é a capacidade que a arte engajada nas questões da herança Afro-Americana tem de conseguir apontar a mira desse foco criativo herdado para outras direcções – por um lado, chega ao Outro falando da sua herança e, por outro, fala de questões relacionadas com a herança do Outro falando da sua. ¶ Quando se nomeiam dois tipos de descriminação, como racismo e o sexismo, presentes no trabalho de Matana Roberts, não se pode simplesmente reduzi-lo a isso, porque a sua prática não se fecha nestas duas matérias. O interesse do seu trabalho adensa-se quanto mais todos estes tipos de descriminação se entrecruzam, se fundem, e ao falar da escravatura negra do séc. XVIII, Matana Roberts fala também noutros tipos de escravatura no séc. XXI, como a artista refere na entrevista à revista Wire: ¶ Podes usar estas estórias e estas narrativas como uma forma de expressares um passado mas também um presente. E, o que é realmente interessante, o que eu espero conseguir é transformar o trabalho em algo mais, é usá-lo como uma plataforma [para abordar] estas outras formas de escravatura que prevalecem. O tráfico sexual, por exemplo, só em Nova York, é um problema enorme. Os problemas com a imigração estão realmente a transformar os imigrantes em servos indigentes ou, em alguns casos, mesmo em escravos. Então, estou a tentar encontrar novas maneiras de falar sobre estas coisas, de trazer mais atenção para estas outras coisas porque eu sou descendente dessa indústria. É preocupante, é fascinante e é uma história que me dá um certo sentido de compasso e direcção. (5) ¶ Matana fala de Nova York, mas podemos enumerar casos idênticos em Portugal, como a escravatura laboral de imigrantes romenos, moldavos, nepaleses, etc, na apanha da azeitona. Ou, por exemplo, segundo os dados da Observatório do Tráfico de Seres Humanos em Portugal, em 2014, foram identificados cerca de 182 presumíveis vítimas de tráfico humano, das quais 86 eram vítimas de exploração sexual (6), e estes são os casos identificados, pois todos sabemos que o problema é muito mais profundo. ¶ O trabalho de Matana Roberts reveste-se então dessa possibilidade de ser o reflexo do Outro, ou, convocando aqui Albert Ayler para ilustrar esta ideia falando sobre jazz: ¶ A música negra não diz respeito a brancos ou a negros porque é do nosso povo, do universo, não tem donos… (7) ¶ Apesar dessa característica de alteridade, o trabalho de Matana parte indubitavelmente da sua herança cultural, política, musical, familiar e emocional. No disco Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile temos acesso a leituras de Matana a partir de entrevistas feitas à sua avó, que contam relatos da vida quotidiana inserida numa comunidade do Mississippi, estado do Sul dos EUA: ¶ (…) frio, velas, algodão, Camden, Mississippi / o mais velho era o Willie May, eu sou a mais nova, abençoada Emma, só o mais velho e a mais nova ainda estão vivos, todos os outros estão mortos / a mãe e o pai eram rigorosos, não trabalhavam ao Domingo, era dia santo / às vezes sinto-me como uma criança sem mãe / Se vou morrer quando estiver acordada, Peço ao Senhor para levar a minha alma / o Willie May e eu saltávamos à corda e jogávamos à bola e fazíamos vestidos com folhas, bolos de lama e tartes de lama / (…) / e jogávamos ao berlinde / há certas coisas que eu não te posso dizer, querida / melancias, pêssegos e ameixas e cerejas e damascos / melancias, pêssegos, ameixas, cerejas, damascos / Pêras no pomar / (…) mas às vezes não chovia e nós usávamos a água da chuva para tudo, e nessa altura tínhamos um poço, nessa altura tínhamos uma bomba de água / Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome / não gostavam de pessoas negras no hospital / sabes, podias usar um quarto / mas nenhuma enfermeira te ia atender / (…) / há certas coisas que eu não te posso dizer, querida (…). (8) ¶ Na mesma música há também um trecho do discurso de Fannie Lou Hamme, feito em 1968 na Convenção Nacional Democrática, que é bastante ilustrativo da brutalidade policial sobre os indivíduos afro-americanos: ¶ Fui colocada numa cela com uma jovem mulher chamada Miss Ivesta Simpson. Depois de ser colocada na cela comecei a ouvir sons de pancadas e gritos. Eu podia ouvir os sons de pancadas e gritos horríveis. E eu podia ouvir alguém dizer: “Podes dizer ’Sim, senhor’, preta? Podes dizer ‘Sim, senhor ‘?” E eles diziam outros nomes horríveis. Ela dizia: “Sim, eu posso dizer ‘Sim, senhor’.”Então, vá, diz isso.” Ela disse: “Eu não o conheço bem o suficiente.” E eles bateram-lhe… (9) ¶ Esta prática de mistura de várias referências pessoais e políticas, populares e eruditas, tanto na música como nas letras, demonstra bem a horizontalidade com que a artista trabalha as várias referências que aparentemente podem ser divergentes ou incompatíveis. Então, nestes discos, aparecem discursos de Malcolm X misturados com o canto das aves e falas de Gertrude, uma sem-abrigo de Jackson, a voz de um tenor com canções populares, infantis e free-jazz. A música de Matana Roberts propõe um encontro de várias práticas de forma igualitária, e a própria artista define o seu processo de trabalho como panoramic sound quilting (10), que, traduzindo (muito) livremente, seria algo como uma colcha de som panorâmica(?). ¶ Tradição familiar recuperada por Matana, o seu trabalho é construído como uma colcha de retalhos, como se cada música, cada imagem fosse a conjugação de vários fragmentos, retalhos que a artista vai guardando, recuperando ou construindo, e que depois, juntos, são uma coisa maior, mais complexa, mais forte, mais robusta também, mas alargada, aberta, daí panorâmica. São um documento histórico vivo (11). ¶ Aqui poderíamos também recuperar a ideia do respigador. A artista constrói o seu trabalho como uma respigadora de sons e imagens, um pouco como Agnés Varda fez com os pequenos vídeos que resultaram no belíssimo filme, A respigadora e os respigadores. Nos três capítulos do ciclo Coin Coin, é notável uma composição a partir de vários trechos, fragmentos. No primeiro capítulo, Gens de Couleur Libres, encontramos uma mistura sonora de Art Ensemble of Chicago com (talvez improváveis) Swans (em discos como Soundtracks for the blind, devido aos drones e crescendos de tensão presentes em algumas músicas do disco de Matana) tudo mesclado com gritos e choros, simulando (talvez mesmo sentindo) a dor dos escravos negros do séc. XVIII. ¶ No segundo capítulo, Mississippi Moonchile, Matana reúne novamente um conjunto de músicos, mas cria um disco mais luminoso, cheio de dor também, mas com um tom esperançoso. Há momentos de luz, o saxofone também embala, não fere só, e depois há a presença de um tenor que canta numa simbiose perfeita, que eu nunca tinha imaginado possível entre o jazz, a música experimental e a música dita lírica. ¶ No último capítulo editado, River Run Thee, Matana está sozinha. Esse é, quanto a mim, o mais obscuro de todos os três. Há presença de instrumentos electrónicos, samples de ambientes exteriores e conversas, depoimentos políticos, gravações de melodias infantis. Mas há sempre um ruído quase claustrofóbico que oprime, podendo sentir-se de facto um mau estar que eu interpreto como próprio da conjuntura política e social. Apesar da artista referir que tem esperança no futuro, este último capítulo, o terceiro (no total serão 12), a meu ver, é o mais desencantado, o mais sombrio, triste até. 





 Matana tece de facto os seus discos como se fossem uma manta de retalhos, musical e visualmente. Confessa coleccionadora de imagens antigas, Matana Rorberts, à semelhança das músicas, vai construindo as imagens das capas dos seus discos e os posters que os acompanham, colando e conjugando várias fotografias, acrescentando pinturas, decalques, impressões. Vai desenhando constelações possíveis, como podemos ver mais claramente no poster que acompanha o álbum Coin Coin Chapter One: Gens de Couleur Libres: círculos com pautas musicais, que não são paralelas, cruzam-se. Desses círculos, radiam ondas que ligam a outros círculos, a outras imagens. ¶ Flutuando aqui e ali números, os círculos sugestionam datações históricas: 1933, Hitler torna-se chanceler alemão; 1954, o Supremo Tribunal dos EUA declara que a segregação racial nas escolas é inconstitucional; 1910, implantação da República Portuguesa; 1945, fim da Segunda Guerra Mundial; 1873, abolição da escravatura em Porto Rico; etc. No fundo, parece-me que estas cronologias podem ser adaptadas a diferentes eventos, colectivos ou individuais, universais ou regionais, como se a História pudesse ser uma construção individual, ou que, estando num outro ponto geográfico, geracional ou cultural, pode ser lida de outra maneira. Depende de quem olha para ela. 

  
Na capa deste disco, vemos a cara de uma jovem afro-descendente. O olhar cabisbaixo, mas penetrante, faz lembrar os rostos das ilustrações de Emory Douglas para o jornal do partido Black Panthers. Se as pessoas desenhadas por Douglas têm o rosto cabisbaixo não é por subserviência, parece-me que têm mais a ver com uma raiva contida que está prestes a rebentar. Não fosse a capa do disco cortar a jovem pelo peito, poderíamos imaginar que também ela tem armas na mão, uma vassoura, uma catana, uma lança. De qualquer maneira, não me parece que Matana Roberts esteja a apelar à luta violenta, mas também ela apela à luta, a um compromisso, que seja pessoal e/ou íntimo, é um compromisso: ao comentar a música Libation For Mr Brown: Bid Em In, a artista fala dessa espécie de obrigação histórica, esse compromisso ético e impossível de afastar para com os seus antepassados: ¶ (…) a minha vida é muito boa, não teria possibilidade de fazer o que faço, e o privilégio e os recursos que tenho para fazer arte, se não fossem as licitações dessas pessoas. Posiciono-me do lado de tantas pessoas que nunca tiveram a possibilidade de se expressar a si próprias. Se estas coisas não tivessem acontecido, o que é que me teria acontecido a mim? Onde estaria eu? (12) ¶ Ao olhar para a arte de Matana Roberts, podemos fazer inúmeras ligações a outros artistas, como por exemplo Kara Walker. Embora formalmente os seus trabalho não sejam próximos, Kara Wlaker também trabalha sobre a herança da cultura afro-americana, convocando essa iconografia, presente em contos populares, em músicas, em gravuras, para expor a violência e a desumanização de que foram alvo as comunidades afro-descendentes nos Estados Unidos da América ao longo do período Antebellum (antes da guerra) e da Guerra Civil (e não só). 
Essa desumanização pode encontrar-se nas suas silhuetas, pelas quais as mulheres negras são equiparadas a cavalos de corrida. Crianças sofrem mutações ao transformarem-se em jacarés, para não falar da constante caricaturização e exagero físico incidindo comumente na genitália, sendo que em vários trabalhos desta artista podemos ver pessoas a ser usadas como objecto sexual. Toda esta construção imagética ainda perdura, e é comum africanos serem representados desta maneira, da banda desenhada às embalagens de café, cevada, chocolates, etc. ¶ Num dos posters que acompanham o disco Coin Coin Chapter Three: River Run Thee, encontramos uma colagem com aquilo que parece um postal de uma mulher Afro-Americana numa cozinha a cuidar de alimentos, imagem que corresponde ao arquétipo das mulheres afro-descendentes remetidas para o papel de empregada doméstica subserviente. Nesse mesmo poster, como se fosse sangue, vemos sobrepostas impressões de mãos a vermelho. Mas o universo de Matana Roberts não se fecha em categorizações, e as colagens que encontramos no outro poster deste disco abrem-se a outras situações e personagens que não somente afro-descendentes. ¶ Encontramos recortes de uma pintura de estivadores ou amarradores (mulheres e homens), pedras funerárias com flores, uma jovem que sorri algures na década de 1920, gráficos de cotações da bolsa, uma colagem onde se encontram imagens quotidianas de pessoas que posam ociosamente, e outras que trabalham, como se Matana Roberts tentasse reunir todos aqueles que porventura poderiam reescrever a História de uma outra maneira, uma História feita por outras Estórias individuais, anónimas. A História daqueles que não foram incluídos na História, e dos que sofrem as consequências políticas, sociais, culturais da escrita oficial da História. 



As imagens que povoam as colagem de Matana são como pontos que podem ser unidos para a construção de novas constelações, abrindo possibilidades de contar uma nova Estória, numa sensibilidade cósmica que se reflecte numa espécie de estruturação e compreensão universal e até transcendental da realidade porque tem noção dos problemas do real. Mas apela a uma visão alargada, talvez espiritual, dos mesmos, não porque assume a conjuntura actual como o capricho de uma qualquer divindade, antes porque, tendo noção das causas e dos seus actores, apela a uma compreensão íntima/intimista dessas causas, pois essa compreensão tem de ser interiorizada por cada um. ¶ Cada qual, com a sua sensibilidade diferenciada, deve perceber que o poder sobre o outro é uma coisa passageira, que mais valerá compreender o vazio em que estamos e tentar fazer um pouco, que seja, desse nada. E, nesta abertura, há uma espécie de constelações/colagens de pendor espiritualista e universalista (não confundir com espírita, pois do que falamos é de espírito enquanto anima, enquanto sinergia intocável que congrega, que torna complexo, completo numa organicidade própria do caos, sendo intocável e não verbalizável, essa anima pode torna-se visível nas imagens apresentadas). como o trabalho do artista António Poppe, que, também ele, nas suas colagens e (re)colecções, vai organizando o caos, dando-lhe forma, uma forma orgânica e mutável, horizontal na escolha dos elementos. 


Nos trabalhos deste artista as imagens da pintura clássica europeia estão ao mesmo nível dos corais e das conchas, as máscaras africanas ao mesmo nível da poesia hindu, a escrita (encriptada?) ao mesmo nível das fotografias pessoais do artista. Tudo parece confluir numa ordem universal não monolítica porque flui, porque jorra, que celebra a diversidade e a co-existência. Abrindo-se e dirigindo-se ao Outro. Esta vontade de se dirigir e dialogar com o Mundo é como energia  em movimento que também é constante no trabalho de Matana Roberts, é uma oferta de si ao Mundo, ao Outro, mas num diálogo difícil, mágico, secreto, aberto também ele às singularidades de cada um. Termino este texto com um poema de uma poetisa muito cara a Matana, Emily Dickinson: ¶ Esta é a minha carta ao Mundo / Que nunca Me escreveu – / As simples Notícias que a Natureza contou – / Com a sua terna Majestade / A sua Mensagem é entregue / A Mãos que não posso ver – / Pelo Seu amor – Doces – concidadãos – / Fazei de Mim – um terno juízo (13)





publicado originalmente no fanzine Preto no Branco #5 em Janeiro de 2016



1 TUIAVII e SCHEURMANN, Erich, O Papalagui, Discursos de Tuiavii chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul, 12ª edição, Antígona, Lisboa, 1990, p. 73
2 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
3 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 34
4 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
5 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
6 http://www.otsh.mai.gov.pt/Noticias/Documents/OTSH_Infografico_TSH_2014.jpg , consultado a 12 de Dezembro de 2015
7 AYLER, Albert citado por BARRETO, Jorge Lima in Grande Música Negra, edições RÉS limitada, Cadernos de teoria e conhecimento 4, Porto, 1975, p. 29
8 ROBERTS, Matana, Was The Sacred Day in Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile, Constellation Records, Montreal, 2013
9 HAMMER, Fanny Lou citada por ROBERTS, Matana in Was The Sacred Day in Coin Coin Chapter Two: Mississippi Moonchile, Constellation Records, Montreal, 2013
10 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 39
11 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
12 ROBERTS, Matana citada por SPICER, Daniel in Chains of the Heart in The Wire, nº 356, Londres, Outubro 2013, p. 37
13 DICKINSON, Emily, Poemas e cartas (Antologia para um recital), Livros Cotovia, Lisboa, 2000

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A música e as imagens: Laibach

Se me perguntarem se primeiro vieram as imagens ou a música relativamente ao trabalho dos Laibach, eu vou responder que primeiro vieram as imagens, só depois a música, mas nem uma nem outra componente do seu trabalho ficaram apaziguadas dentro de mim. Já tinha ouvido falar dos Laibach, mas só quando foi a exposição dos Irwin na Culturgest em Lisboa, em 2007, chamada Irwin, A história re-construída, é que tive contacto com o universo em que se inseriam. Mais tarde em 2009 na 2ª edição de Residências de Artes Visuais na ZDB o João Alves dos Calhau! voltou a falar-me dos Laibach e da complexidade conceptual dos temas abordados mas, também me chamou à atenção para um problema da sua música, aquilo a que chamou na altura de música musculada, salvo erro. Passados uns meses comprei o meu primeiro disco, Opus Dei.
Os Laibach nasceram na Eslovénia em1980, no mesmo ano da morte de Josip Broz Tito, o líder da guerrilha de resistência anti-nazi, os Partisans, e presidente da então Jugoslávia, nessa altura as clivagens nacionalistas começaram a ter mais impacto e a ser cada vez mas explicitas, culminando uma década mais tarde na guerra da Bósnia e posteriormente do Kosovo.
Os Laibach integram-se numa plataforma multidisciplinar chamada  NSK, Neue Slowenische Kunst (Nova Arte Eslovena) de que fazem parte os próprios Laibach (música), Irwin (artes visuais), Scipion Nasice Sisters Theatre (artes performativas), New Collective Studio (artes gráficas), Retrovision (vídeo), e o Department of Pure and Applied Philosophy  (encarregados de alguma maneira de suportar teoricamente o trabalho dos restantes membros).  Como refere Miguel Wandschneider no texto do jornal da exposição anteriormente referida, a sobreidentificação (…) foi uma das estratégias postas em prática no seio do NSK, em especial pelos Laibach. Com forte caracter subversivo, visava a crítica radical dos regimes ditatoriais através da apropriação mimética e do exagero ad absurdum da ideologia e dos rituais do totalitarismo. (1) Essa sobreidentificação e esse uso exagerado dos rituais dos regimes totalitários é uma coisa que me incomoda nos Laibach, e o uso de símbolos nazis ou de obras ligadas à Nazikuntz um entrave para uma aceitação completa da sua música e de todo o seu trabalho. Embora consiga estabelecer alguma ligação com esta imagética, quando apresentada neste modo subvertido, tem de existir um sentido crítico e de alerta muito forte, porque se por vezes a paródia é flagrante ou há uma subversão do uso desses símbolos de maneira clara, outras vezes há, em que sinto que se pode ser levado pela sedução de tais imagens e sinto que se me distraio é como se estivesse a ser cúmplice e complacente das atrocidades cometidas pelos sistemas totalitários que criaram essas imagens e símbolos. Wandschneider escreveu ainda sobre o NSK, mais concretamente sobre os Irwin: A operação de montagem permite a reinterpretação e reactualização dos signos, esvaziando-os do seu conteúdo (significado) politico e ideológico para os revestir novamente de conotações politicas e religiosas (2), e de facto esses signos são muitas vezes justapostos, mas uma cruz suástica é sempre uma cruz suástica e há-de estar na nossa cultura sempre ligada ao nazismo, ela pode é, ao ser associada a outros signos, contaminá-los com o seu significado, mas não perde o próprio significado porque a memória colectiva que temos desse símbolo está ainda conotada com violência, destruição e preconceito, este processo de contaminação é visível por exemplo na pintura dos Irwin, Cruz de 2000, uma sobreposição de signos que ao serem apresentados em conjunto transportam os seus significados entre si, neste trabalho pode denotar-se claramente também a influência de Malevich e das vanguardas russas. Se na capa do disco The Third Reich’n,roll os The Residents, ao usarem suásticas e a figura de Hitler fazem uma clara paródia a este sistema (e para mim, uma comparação ao totalitarismo da cultura de massas norte-americana, escrevi sobre este disco um pequeno texto que foi publicado n’O Princípio) porque a capa apresenta-se cómica e num estilo próximo da PopArt, num tom comercial e descomprometido, para além disso a música é declaradamente cómica, paródica, jocosa e aparentemente apolítica, já os Laibach, por exemplo, ao usarem suásticas formadas por machados cruzados no envelope do disco Opus Dei, que – subversão das subversões, pois sentido que os Laibach conferem à imagem nesta situação é aparentemente pró-nazi– é uma apropriação duma colagem do artista John Heartfield (o seu nome original é Helmut Herzfeld), artista alemão fundador do dadaísmo e militante comunista, autor de outras fotomontagens contra os nazis bastante conhecidas, dão a este símbolo um grafismo afirmativamente austero, intimidatório, diria mesmo acutilante e para acentuarem a carga agressiva juntam a toda esta imagética a música industrial (também ela conotada com uma certa austeridade rítmica).
A aliança de imagens conotadas com sistemas totalitários e de uma sonoridade declaradamente violenta e militarista faz com que nem sempre consiga ter vontade de acompanhar todos os trabalhos dos Laibach pois que essa sobreidentificação, esse exagero dos rituais totalitários (sobre tudo os nazi-fascistas) é um impedimento à minha total aceitação e usufruo dos trabalhos dos Laibach.
O recurso à sobreidentificação em muito momentos chega a ser declaramente kitsch, por vezes absurda até, e é nestes momentos que me apercebo que tudo nos Laibach é encenação, tudo é uma é paródia, e a repetição exagerada dos rituais e imagens totalitários, o uso de fardas nazis, são um teatro, quase caricatural daquilo que está a ser apresentado/representado, como escreveu Alexei Monroe sobre a acusação que se faz sobre os Laibach serem nazi-fascistas: Se olharmos para figura de Jorg Haider vestido de jeans, pode-se dizer que os actuais (pós-) Fascistas com acesso ao poder e influência geralmente fazem grandes esforços para evitar parecer Fascistas – a completa oposição à abordagem dos Laibach. (3) Mas apesar desta estratégia de sobreidentificação ser, julgo eu, ser uma estratégia iconoclasta, e da afirmação justa que Monroe faz de que os fascistas influentes não querem parecer fascistas, esta estratégia é problemática e há sempre o perigo de, ao reproduzir estes rituais e ao utilizar certos símbolos, motivar e incentivar eventuais apologistas de ideias nazi-fascistas, menos atentos à paródia irónica que fazem deles (e ainda assim fazem questão de estar presentes em vários concertos). Esta potencial má interpretação vem do facto de aparentemente esta banda atestar estes símbolos, embora não acreditando que os membros dos Laibach tenham qualquer ligação a movimentos fascistas, entendo que esta estratégia de sobreidentificação pode, em certas instâncias, ser perigosa porque apresenta-se na maior parte das situações extrema, ou como o João Alves tinha comentado, musculada, e quando ele usou esta expressão interpretei-a como uma certa masculinidade autoritária presente ao longo do trabalho dos Laibach. Há excepções, nomeadamente nas versões de música pop-rock, em que a paródia é clara, chegando a roçar o mau-gosto, e os fascistas não se costumam definir por gostarem de ser ridícularizados em público ou pelo sentido de humor. De qualquer maneira o recurso à imagética nazi sempre foi polémico, mas também o uso da socialista e ainda mais quando conjugadas, sendo os Laibach acusados de ser, ora fascistas, ora comunistas, e embora para um público americano e da Europa ocidental estas imagens possam ser apenas mais imagens de brutalidade quase irreais e abstractas, para o público jugoslavo que tinha sofrido a ocupação nazi todos esses símbolos eram claros símbolos traumáticos de opressão e violência, então essa germanização e o próprio uso do nome Laibach, que era o nome da cidade de Lublijana durante o domínio austro-húngaro e depois em 1943 pela Alemanha aquando da ocupação nazi, sempre foi muito problemática para as repúblicas jugoslavas que tinham sofrido na pele as nomenclaturas forçadas de localidades para alemão, os fuzilamentos, as perseguições, a exploração e, para a Eslovénia, mais do que a simples subjugação, a própria tentativa de assimilação no III Reich por exemplo.  
No início da década de 1990, com o colapso dos regimes socialistas da europa de Leste e, mais particularmente, com a desintegração da Jugoslávia, o NSK confrontou-se com o desaparecimento dos parâmetros estatais que até então lhe haviam servido de referência. (4) E com essa desintegração surgiram as declarações de independência das diferentes repúblicas, primeiro a Eslovénia que ainda esteve em guerra com as restantes durante seis dias, em seguida a Croácia votou pela independência, em 1992 chegou a vez da Bósnia, então estalou a guerra naquele território.

Devido ao meu sentimento de confusão, que de resto me parece ser uma das (se não mesmo a essencial) intenções dos Laibach, vou optar por comentar mais profundamente um único álbum, NATO que se refere inteiramente à desintegração da Jugoslávia, a guerra que lhe sucedeu e sobre os interesses económicos e políticos exteriores associados. Ainda que tudo o que envolve a situação da guerra na ex-Jugoslávia me pareça muito confuso e extremamente complexo, como nos deve parecer a todos, este é o álbum dos Laibach que me parece mais interessante porque é o que, na minha opinião, tem a direcção mais definida e mais clara e porque partilho das posições tomadas neste álbum, ou pelo menos tomo-as como próximas das minhas. 
A capa do disco em tons de azul e metalizado apresenta uma figura feminina desnudada que me faz lembrar uma mistura das usadas por Mucha com a personagem do robot do filme Metrópolis de Fritz Lang sobreposta com o logotipo da NATO (North Atlantic Treaty Organisation, em português OTAN), remetendo-nos para uma cenário de ficção científica e, de alguma maneira, pós-apocalíptico. Usando a mesma técnica de subversão da música pop que, tomando novamente como exemplo os The Residentes no álbum The Third Reich’n’roll, e os próprios Laibach antes em Opus Dei, neste disco são reinterpretadas várias músicas da pop ocidental sobre o tema da guerra, a colonização cultural, e os medos futuros (5), entre outras Final Countdown (Europe) e In the army now (Status Quo), e foram dadas a essas músicas uma conotação mais bélica e marcial, subvertendo por vezes a intenção original, tanto pelo uso da música como pela alteração das letras: se na versão original dos The Temptations da música War à pergunta Guerra! Para que é que isso é bom? a resposta é: Para absolutamente nada (6), os Laibach na sua versão apresentam inúmeras razões; se na versão original dos Pink Floyd de Dogs o War temos solos de guitarra e saxofone criando um ténue sentimento de empatia pela música, os Laibach dão-nos música techno com laivos de drum’n’bass finalizado a música com coros e arranjos sinfónicos, a voz do vocalista é áspera, dando-nos um sentimento de crueza e agressividade, os ritmos são mecânicos fazendo-nos sentir uma espécie de autómatos; a versão do americano J. D. Loudermilk da música Indian Reservation é alterada para National Reservation e em vez de falar sobre a agressão e aniquilação das comunidades índias nativas dos EUA, os Laibach falam da agressão económica e cultural e dos interesses dos países capitalistas do Ocidente naquela área dos Balcãs, sendo que as estratégias em ambos os casos são as mesmas (e os agressores no fundo também).
No press release do álbum constava esta frase: Agora os Laibach levam a NATO onde a própria NATO tinha recusado ir. (7) Pois bem, a NATO desejosa de ir onde se tinha recusado ir, esperava o momento certo para lá ir, e isso viu-se em 1999 nos bombardeamentos à Sérvia. Os Laibach recapitulam a NATO como um regime ideológico, e ligam o sistema económico que ela representa à cultura pop (8), daí o recurso às músicas que constam neste álbum. E se estas músicas produzidas maioritariamente pela, na e para a cultura de massas ocidental capitalista são na maioria dos casos anti-bélicas os Laibach transformam-nas certeiramente em músicas agressivas, opressoras, assustadoras, realmente militaristas e pós-apocalípticas, como está presente na versão de 2525, original de Zager and Evans: (...) In the year 9595/ I'm kinda wonderin' if man is gonna be alive/ He's taken everything this old earth can give/ And he ain't put back nothing/ Now it's been ten thousand years, man has cried a billion tears/ For what, he never knew, now man's reign is through/ But through eternal night, the twinkling of starlight/ So very far away, maybe it's only yesterday (9). Este álbum faz uma analogia com o lado obsceno da retórica democrática da NATO, lado que veio a destaque em 1992 com a exposição das suas operações Gladio em Itália (10) que consistiam numa estrutura de apoio a exércitos secretos [que se] manifestou (…) diferentemente nos diferentes países, de acordo com a situação política interna de cada um. Em Itália, onde o partido comunista emergiu da guerra com prestígio pelo seu papel na resistência ao nazi-fascismo, forte intervenção na vida política do país e implantação eleitoral, o Gladio teve um forte envolvimento na manipulação e desestabilização da vida política do país, que contribuíram para o enfraquecimento do sistema democrático. (…) em Espanha, Portugal, Grécia e Turquia, com acentuado ascendente das forças armadas na vida política desses países, os exércitos secretos intervieram no combate às oposições aos respectivos regimes. (11) Os Laibach apresentavam-se então neste álbum ainda mais militaristas e bélicos que a própria NATO se apresentava na altura, mas conscientes dos interesses económicos e geopolíticos naquela zona da Europa. A escolha de elementos musicais disco não foi ingénua, segundo os Laibach os ritmos “disco” estimulam mecanismos automatistas e formatam a industrialização da consciência de acordo como o modelo de totalitarismo e produção industrial (12), a ideia que me parece que aqui está presente é que estes ritmos podem ser escapistas, até alienadores de consciência e por isso facilmente instrumentalizados de acordo com os programas dos regimes políticos (quem diz políticos diz económicos). Essa sensação está sempre presente no álbum, porque apesar das letras serem sobre a catástrofe e as razões da guerra, elas contrastam com os sons techno e jungle (antecedente do drum-n,bass) que por vezes no álbum são quase dançáveis, fazem-nos sentir deslocados da realidade e que permitem também associar toda uma cultura hedonista e de exaltação da um liberdade inócua muito em voga nos anos 90. Então os Laibach fizeram a junção perfeita da música pop anti-bélica e os interesses bélicos da NATO como diz Monroe: O tipo de música abrangida no NATO é a banda sonora de fundo da realidade dos estados da NATO, e o álbum desenhava uma ligação entre a expansão territorial da NATO como a agência militar do “capitalismo real” e a expansão territorial relacionada com a musica popular ocidental. (13)

Os assuntos tratados neste disco dos Laibach fez-me lembrar do trabalho do artista bósnio Andrej Đjerkovic que conheci recentemente através do projecto Souvenirs from Europe da editora Ghost, o trabalho em questão é uma fotografia tirada em 1997 nas ruínas do Museu Olímpico de Sarajevo com a bandeira da União Europeia no lugar de uma janela, colada com a mesma fita-cola que os habitantes dessa cidade punham nos vidros para não se partirem nos bombardeamentos durante o cerco a Sarajevo. Na fita-cola estavam impressas as palavras Fragile/ Careful. Para mim esta imagem é claramente demonstrativa das intenções da NATO e da UE em relação às repúblicas ex-jugoslavas: rapina, oportunismo e expansão territorial. Embora os Laibach no seu álbum não sejam tão categóricos e exista sempre um tom irónico e dúbio no seu trabalho, penso que esse álbum fala precisamente destas problemáticas. Na música War, à pergunta What is good for? os Laibach enumeram uma lista de boas razões: Mobilization/ Science/ Religion/ Domination/ Communication/ Teleportation (…) GM, IBM, Newsweek, CNN/ Universal European/ITT, VCR/ Industry/GM, IBM, Newsweek, CNN/ Universal European/ ITT, VCR/ NGM/Siemens, Sony/ Universal European/ Volkswagen. (13) Estas respostas demonstram bem as intenções da NATO e da União Europeia. Antes do colapso da Jugoslávia a última linha da NATO era na Alemanha e as repúblicas jugoslavas eram um alvo aliciante pela proximidade com a Rússia. Também para a União Europeia estas repúblicas economicamente estáveis e desenvolvidas podiam ser uma ameaça aos interesses de expansão capitalista, mas um alvo aliciante na medida em que eventualmente com o colapso da estrutura que as unia seriam um alvo mais fácil, e muito provavelmente futuros candidatos à integração na União Europeia (o que se verificou mais tarde), daí a inacção da comunidade internacional, que poderia ter mediatizado diplomaticamente o conflito, perante a escalada de violência e da intensificação das provocações nacionalistas (de que se aproveitaram todos os interessados desta guerra) para que as repúblicas se destruíssem mutuamente e assim fosse mais fácil intervir económica e politicamente nesses territórios tanto geográfica como economicamente tão importantes na Europa. Como se viu em 1999 houve uma agressão militar directa à Sérvia para a alegada protecção dos Kosovares albaneses causando a destruição do que restava do sistema produtivo daquele país e de inúmeras infraestruturas civis, pontes, casas, fábricas e assim a União Europeia pôde conseguir contractos para as suas empresas na reconstrução destes países, usando muitas vezes estes contractos para lavagem de dinheiros e a NATO por sua vez conseguiu aproximar-se da fronteira com a Rússia assentando as suas bases mais tarde no Kosovo. Estas questões que estão presentes no álbum NATO, tive oportunidade de aclarar durante uma conversa por e-mail com o artista Andrej Đjerkovic. E esta intenção de colonização cultural e económica está bem presente na música National Reservation: They took the whole eastern nation/ Moved us on these reservations/ Took away our ways of life/ A hand grenade, and a carving knife/ Took away our native tongue/ And taught their/ English to our young/ And all the things we made by hand/ Are nowadays made in Japan. (14)
Porque quando a guerra nos Balcãs estalou eu era uma criança, pouco consegui perceber, apenas me lembro de imagens horríveis de pessoas em fuga, filas de tractores e atrelados apinhados de gente, militares, destruição e sofrimento, e aquilo estava a acontecer na Europa, isso assustava-me mas não percebia, parecia irreal, nesse sentido foi essencial esta conversa com este artista e escutar e tentar compreender este disco dos Laibach, NATO, mas também, por exemplo a leitura do livro de banda desenhada do Joe Sacco Safe area, Goradze, ou do Regards from Serbia do Alexandre Zograf, ou do Fatherland da Nina Bunjevac, entre outros, embora muito fique por compreender, porque tudo me parece incompreensível.
Hoje sou mais crescido e, porque os mass media apenas confundem e pouco nos informam, também tenho dificuldade em perceber o que se passa na Ucrânia, no Iraque, na Síria… ou o que se passou no Chile, no Irão, na Guatemala, em Portugal…


originalmente publicado no fanzine Preto no Branco #4 em Novembro de 2014

1WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 1
2 WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 6
3 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 209
4 WANDSCHNEIDER, Miguel, Irwin, A história re-construída, Culturgest, Lisboa, 2007, p. 1
5 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p.239
6 WHITFIELD, Norman, War in Psychedelic Shack, Motown, Detroit, 1970
7 LAIBACH, in Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 239
8 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 240
9 EVANS, Rick,  In the year 2525 (Exordium and Terminus), RCA (edição original em 7”), 1969
10 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 240
11 ROSA, Rui Namorado, Nato: A outra face da Nato in http://www.searanova.publ.pt/pt/1715/dossier/122/, consultado em 2 de Outubro de 2014
12 LAIBACH, in Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p. 239
13 MONROE, Alexei, Interrogation Machine, The MIT Press, Massachusetts, 2005, p 241
14 LAIBACH, National Reservation in NATO, Mute, Londres, 1994